O Desejo e o ‘mais além’ da demanda
É preciso “… tomar o desejo ao pé da letra!” (Lacan, 1958, p. 626). A frase foi proferida em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, quando Lacan tratava do manejo da transferência e da interpretação no tratamento analítico. Nesse manejo, ele situa o desejo como uma ética, definindo-o como uma estrutura constituída pelo “(…) que se manifesta no intervalo cavado pela demanda além dela mesma…” (Lacan, 1958, p. 627). Trata-se para Lacan do desejo como metonímia da falta-a-ser, com a qual o sujeito faz apelo ao Outro, esperando dele receber seu complemento. Vale ressaltar que todo apelo se desdobra em um lugar da fala e pela falta, posto que resulta da impossibilidade do Outro satisfazer plenamente as necessidades do sujeito. Em sua presença desejante o Outro transforma as necessidades do sujeito em ‘demanda de amor insatisfeita’; tal como descreveu Freud (1912) em “A dinâmica da transferência”, como aquilo que mais tarde será transferido ao analista.
É por meio das vicissitudes do circuito entre necessidade e demanda que o desejo se esboça como ordem linguageira da demanda, estruturando-se como falta. Com Lacan dizemos que o desejo é desejo do Outro e é sempre desejo de outra coisa. O que leva a uma outra afirmação: o desejo é sem objeto.
Na direção do tratamento, Lacan é preciso quanto ao lugar da demanda: ela deve ser colocada entre parênteses, “sendo excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma” (Lacan, 1958, p. 647). Esta é uma observação valiosa para que a resposta à demanda não conduza a transferência à sugestão, o que aniquilaria o desejo. Lacan afirma que nenhum obstáculo deve ser colocado ao que ele denomina como a ‘declaração do desejo’ do sujeito, pois é para lá que o analisante deve ser dirigido no tratamento. Lacan adverte que não pode haver enganos sobre o lugar do desejo numa análise. Para capturá-lo é preciso interpretá-lo e para isso, a direção do tratamento deve ser mantida, necessariamente, fora dos efeitos da demanda. Importante acrescentar também que para Lacan o desejo está referido à impossibilidade de uma fala; aquela que poderia suspender a marca que o sujeito recebe de seu dito.
No Seminário 6, Lacan (1959) assevera que a captura do desejo se dá por meio da fantasia, em sua relação de confronto com ele. Pois, quando deseja, o sujeito está situado em algum lugar no objeto de sua fantasia, situada por Lacan como índice da posição do sujeito no desejo, cujo valor só é dado por uma suspensão, uma pausa na qual o sujeito perde o sentido dessa posição. Aquilo que ele não consegue dizer de seu ser – aí está a afânise do sujeito – e, portanto, a baliza do desejo.
Quando afirma no Seminário 11 que o desejo é a própria interpretação, Lacan a define como uma estrutura temporal que aponta o desejo, que deve ser lido nas entrelinhas, de forma metonímica, por alusão. A interpretação teria como efeito fazer surgir um significante irredutível. Por isso, como disse Lacan, a interpretação não é aberta a todos os sentidos e “(…) não é de modo algum não importa qual …” (Lacan, 1964, p. 237). É preciso que, para além da significação, o sujeito veja a qual significante não-senso, traumático, ele está assujeitado.
Vale aqui trazer a citação de Soler quando ela especifica uma interpretação que deve incidir sobre o real. Aquela que aponta o dedo para “(…) este lugar onde o Outro não responde, mas onde o falante está inscrito sob um significante que não é do Outro.”(Soler, 2012, p.27).
Como operar com a interpretação de modo a promover a passagem da demanda à articulação do desejo? Como a interpretação pode fazer face à incompatibilidade do desejo com a fala? Que saídas o analista pode encontrar diante da reação terapêutica negativa, que se manifesta como compulsão à repetição, mitigando o desejo e ameaçando esgarçar o laço transferencial?
Uma analisante se queixa sobre o ‘não sentido’ da vida que insiste em sua existência, fazendo-a repetir uma posição entre depressiva e irritada, cujos efeitos comparecem no contexto familiar, no relacionamento amoroso e no trabalho. Ela se vê repetidamente destituída, preterida, injustiçada; os embaraços são significativos. Ao experenciar na análise um tempo sem angústias expressivas, decide pela segunda vez suspender o tratamento, alegando não ter o que falar. Irrita-se com a analista ao ser questionada sobre essa intenção, sobretudo pelo que ouviu dizer da psicanálise que quando alguém quer suspender o processo é sempre por resistência; acha isso injusto. Em meio à explicações para a decisão de suspensão, interrompe a si mesma: Mas eu volto né? Algo do desejo surge ali, no ‘sem sentido’ dos motivos que a fazem retornar às sessões, já que para ela, não havia mais o que falar. No primeiro momento fica sem reposta para a própria pergunta, mas, após uma pausa, dispara: … É por obrigação! … A analisante recua diante de sua contradição e segue sustentada em suas demandas. Perante a pergunta: ‘obrigação’? ela retruca: eu estou bem, mas não me custa vir aqui semanalmente!
Os versos de Chico Buarque nos ajudam no esforço de ilustrar e bordejar a errância do lugar do desejo e os descaminhos de sua busca. Suas palavras: (…) quis saber o que é o desejo, de onde ele vem… Fui até o centro da terra e é mais além!!… nos remetem à procura do desejo, no ponto em que essa investigação deve nos lançar no ‘mais além’ da demanda. Tomar o desejo ao pé da letra, como disse Lacan, só parece possível se do ‘centro da terra’, como disse Chico, o analista seguir interrogando o “…mais além” desse centro: lá onde o sujeito decide ir “…até ao limite de uma paixão” para “…baldear o oceano com as mãos”.
Karina Veras- Membro da EPFCL-RDB-Natal
Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
LACAN. J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. (1958) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J.: O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação/Jacques Lacan. (1958-1959). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2016.
LACAN, J.: O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
SOLER, C. Uma interpretação que leve em conta o real. In: Stylus, Rio de Janeiro. N° 24 p. 25-40, 2012.







