A-Historicismo Pandêmico
Felipe Augusto de Almeida Pessoa.
Nos encontramos hoje mais próximos do retorno de nossas atividades presenciais, o que poderia ser considerada uma dita normalização dos encontros dos indivíduos. Aguardamos ansiosamente surgir no horizonte uma luz no fim desse túnel, um ponto de parada desta catástrofe que, com certeza, entrará para os registros históricos – não somente pela completa e total incompetência governamental, mas também com a clara percepção de que agentes diversos lutaram a todo momento para manter as populações em ignorância sobre temas que seriam essenciais para sua própria sobrevivência.
Muitos se foram, ainda se vê as lágrimas que rolaram e se escuta os lamentos que foram entoados por aqueles que partiram. Aqui ficamos e aqui seguimos, lambendo nossas feridas e, como Antígona que paga um preço alto para que seu irmão morto não fosse esquecido na poeira da cidade, também sigamos: pagando um preço para falar, falando para não desaparecermos.
Didier-weill (1997), em sua instigante obra Os três tempos da lei, nos traz por intermédio da arte uma questão, encaminhada pela esfera das artes ao psicanalista: ‘onde encontrará força o dançarino que cai, onde encontrará aquilo mesmo que o fazia desafiar a gravidade e o peso próprio da matéria do seu corpo, e executar o salto de sua dança?’
O desafio lançado pelo artista é elaborado pelo autor como uma provocação a tentar entender justamente como pode o sujeito recobrar a posição ereta do qual um passo recoberto de poeira da queda, possa ser desenhado.
Porque torna-se particularmente importante essa questão? Pois é sobre este tipo de questão que a incomensurável queda que coletivamente sofremos, e a qual estamos pouco a pouco nos reposicionando nos instiga. Digo reposicionando, pois é justamente disto que se trata, assim como um homem não entra no mesmo rio duas vezes, nem somos nós os mesmos, nem o mundo é mais idêntico ao que era antes de uma pandemia. Penso que essa não seja uma questão que será respondida tão cedo, seguiremos então a indagar a clínica, o nosso lugar de oficio, pela escuta.
Este acontecimento global tomou os corpos dos indivíduos tirando dos pulmões o ar, a paz e muitas vidas. Esse vírus tornou clara a fragilidade dos nossos corpos e a ilusão da globalização, mostrando a dura realidade das dificuldades locais e a escassez de recursos.
Nas últimas décadas os corpos se tornaram mais longevos pela medicina moderna, como também palco de variadas modificações estéticas, confrontos políticos na disputa pelo direito de gozá-lo. Parece então prudente questionar, onde a psicanálise entra no meio disto tudo. Visto que para a psicanálise não é o corpo celular ou o biológico que se interessa.
O corpo a que a psicanálise se endereça não é outro se não o corpo pulsional, um corpo marcado em sua origem pela linguagem, pela participação do Outro. Isso não quer dizer que o corpo não padeça da atuação de um vírus ou o atravessamento de uma bala. Mas no que diz respeito à psicanálise o sujeito é efeito de linguagem e assim também o corpo. Não há sujeito sem o atravessamento pela linguagem e a torção da necessidade em demanda dirigida ao Outro, de uma certa forma instrumentalizando o corpo de linguagem, sendo assim o corpo é tomado em seu território pelo incorpóreo da linguagem, como nos fala Soler (2019).
Desde Freud, a fala, o corpo e o sujeito são postos em questão juntos, não há como falar de um sem falar dos demais; e, apesar de abordá-los em separado, não o são desta forma.
Colette Soler (2019) nos fala da mortificação do corpo pela linguagem, o que merece que nos debrucemos sobre, pois encontraremos aplicações clínicas muito significativas. A mortificação do corpo pela linguagem fala de uma perda de gozo, uma perda fundamental e significativa do que concerne a irreparável causação do sujeito em sua relação ao Outro, trata-se de uma perda de gozo.
É através desta perda que podemos falar do falta-a-ser como efeito da linguagem, e é também por esta perda no seio do ser que é possível compreender que o corpo do sujeito é linguagem. O corpo é banhado pela linguagem materna introduzindo o sujeito, a alienação ao desejo materno, pela simbolização do corpo por este dizer do Outro. “A pulsão é o eco no corpo pelo fato de que há um dizer.” (Soler 2019 p. 85).
O que está sendo dito é que toda trama de alienação e separação que bem sabemos tem seu caráter estruturante assim como tem um que de enganação través da promessa da significação completa do Real do corpo. Algo sobra, o objeto pequeno a.
Em A Coisa Freudiana (1955), Lacan fala que é justamente através das promessas e antecipações da linguagem pelos seus preceptores, o pai e a mãe, que o convidado de pedra é moldado, perturbando o sujeito nos sintomas “o banquete de seus desejos” (Lacan, p.435).
Da tomada do corpo pela linguagem, resulta uma perda, perda da potencialidade do vivente, a necessidade passa, por intermédio do simbólico por uma torção e então a necessidade passa a ser mediada, pelas cores do Outro.
Tomado pela linguagem, um corpo que perde algo e neste contratempo um corpo que pesa em sua materialidade, encontro um oco para sua dança pelo exemplo de Didier-Weill. A fundação do corpo dá-se aí, para além do campo das necessidades, quando a demanda se torna evidente anunciando a efetiva entrada do simbólico, quando a linguagem corpsifica o corpo.
Trago para esse prelúdio esse tema que é debatido por Freud e por Lacan em vários momentos, pois parece-me cada vez mais necessária a lembrança que é da experiência da fala que a psicanálise se compreende. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1953), Lacan reitera que é pelo campo da fala que o psicanalista se ocupa em seu oficio.
(…) não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte, e que é esse o cerne de sua função na análise.
Mas, se o psicanalista ignora que é isso que se dá na função da fala, só fará experimentar mais fortemente seu apelo, e, se é o vazio que nela se faz ouvir inicialmente, é em si mesmo que ele o experimentará, e é para-além da fala que irá buscar uma realidade que preencha esse vazio.
Assim ele passa a analisar o comportamento do sujeito para ali encontrar o que ele não diz. Mas, para obter a confissão, é preciso que fale disso. Então, ele recupera a palavra, mas tomada suspeita por só haver respondido à derrota de seu silêncio, ante o eco percebido de seu próprio nada.
Mas qual foi então, esse apelo do sujeito, para-além do vazio do seu dito? Apelo à verdade em seu princípio, através do qual vacilarão os apelos de necessidades mais humildes. (Lacan 1998, p 249)
Em Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (1958), somos lembrados que a insistência na associação livre é significativa para que a experiência da fala ultrapasse o dito e o sujeito seja falado pelas palavras. “Digamos, apenas que ao reduzi-lo à sua verdade, esse tempo consiste em fazer o paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas que isso não justifica que o próprio analista o esqueça.” (Lacan, p. 592).
A lida com o significante no fluir dessa cadeia e da insistência na regra de ouro da associação livre são, assim como Lacan nos lembra, essenciais para que o terreno da psicanálise ainda seja frutífero.
Por que traço aqui um caminho sobre a aridez do corpo? Porque apesar deste acontecimento pandêmico acometer o corpo, a covid-19 deve também ser entendida no campo da linguagem. Para nós que nos ocupamos de palavras e sujeitos convém não esquecer o nosso martelo e nossa bigorna, onde e como moemos os grãos significantes, do imaginário e das histórias que nos são ditas.
Como esse significante codificado (covid-19) foi tomado no discurso? Como, no discurso social, foi possível ver esse elemento do discurso pandêmico ser tomado por este ou aquele país? Em que lugar aqueles que nos deixaram são identificados, ditos? O que se apresenta em nossos consultórios? Para além dos registros da história, o que do sujeito é revelado aí, nisto que aconteceu e acontece? Isto é de maior importância pois como nos lembra Lacan me A coisa Freudiana (1955) constatando um traço importante da cultura norte americana, um a-historicismo importante que recobre os indivíduos.
Este a-historicismo é significativo e nos parece talvez uma palavra-chave que pode nos servir para compreender as demandas “aqui e agora” na clínica, a coisificação dos indivíduos, o trato mercantil das relações e dos corpos, e o apagamento histórico dos sujeitos a serem identificados pelos traços sintomáticos.
Lembro o que Lacan nos alerta em Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise e também em A coisa Freudiana, para que escapemos das tentações de uma fenomenologia do sintoma, de uma objetivação por vezes desnecessária, do lamento do que nos procuram. Trata-se de colocar a fala à deslizar para que o sujeito seja, por fim, falado.
Bibliografia
Didier-Weill, Allain – Os Três Tempos da Lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Tradução Ana Maria de Alencar; revisão técnica, Marcos Comaru. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1997
Lacan, Jacques – A coisa Freudiana 1955 in Escritos: tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
Lacan, Jacques – Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise 1953 in Escritos: tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
Lacan, Jacques – Direção do tratamento e os Princípios de seu Poder 1958 in Escritos: tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
Soler, Collet – O em-corpo do sujeito: seminário de 2001-2002. Tradução Graça Pamplona, Sônia Magalhães, Cícero Oliveira, Elisabeth Saporiti. Salvador: Ágalma, 2019.