O sujeito frente à face horrenda do Real.
Felipe Celestino
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados
Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados
Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados com seus tetos terminam sem assistência
No horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Voltaire (O desastre de Lisboa –Terremoto de 1755[1])
Na tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, a cidade de Petrópolis no Estado do Rio de Janeiro foi acometida por um grande desastre. Um volume de chuva como nunca antes registrado[2] causou um enorme rastro de destruição, tendo como resultado centenas de mortos e milhares de desabrigados pelos desabamentos e deslizamentos de terra proveniente dos morros. Minutos após a chuva ceder, corpos que foram arrastados pela enxurrada jaziam nus pelo centro da cidade, centenas de carros se amontoavam nos leitos dos rios, ruas cobertas de lixo e destroços. As equipes de socorro não conseguiam se locomover e alcançar as áreas atingidas, problemas na rede de telefonia e internet impediam parte da população de estabelecer contato e obter informações de amigos e familiares, um grande número de pessoas se dispersava com dificuldade sobre uma grossa camada de lama que tomava as ruas.
Além de todo o cenário de guerra descrito, uma sensação de insegurança generalizada se instalou, foram perpetradas tentativas de arrastões, furtos nas áreas atingidas e alguns relatos de violência sexual. O Real emergia com força e violência, expondo os sujeitos a uma experiência intensa de horror e desamparo.
Ao longo de toda sua obra Lacan irá nos advertir que o Real, quando se presentifica, não pede licença, não dá sinal, não traz atribuição, não tem juízo, o real é sem conteúdo: “apenas é”, o “Real enuncia: há” (…) é a impossibilidade de deduzir seja o que for”[3]. Radical em sua posição: ” ‘como furo’ (…), é um lugar que para o campo da palavra é impossível. Impossível de reconhecer. Não se pode nem dizer nem escreve.”[4].
Em uma tarde quente de verão que transcorria como um dia corriqueiro, de repente, as nuvens se acumulam e caem, e em meio a isso: a limitação dos corpos diante das forças da natureza se põem à prova pela sobrevivência. Não há tempo para escolhas equilibradas, não há lugar seguro,”o mundo externo se volta contra o sujeito com forças de destruição esmagadora[5]”. Além disso, as “tendências destrutivas” e “más” do ser humano também comparecem através da violência, revelando em sua agudeza o “homo homini lúpus[6]“, esta “besta selvagem” e de que a barbárie dos tempos primevos está mais próxima da civilização do que supomos acreditar[7].
É preciso destacar que nos dias seguintes ao evento/desastre/acontecimento, um estado de urgência política e econômica acabou por se instalar na cidade. Frases que remetiam à reconstrução e retomada eram insistentemente veiculadas na imprensa, como se, em uma corrida contra o tempo, a comunidade precisasse retomar seu estado de normalidade. Em meio àquilo “que urge”, parecia não haver espaço para se falar e para se ouvir das perdas irreparáveis que estavam em jogo. Reflexo do discurso contemporâneo que parece excluir o irreparável, como se tudo fosse possível de ser solucionado.
A experiência da clínica psicanalítica nos coloca diante de uma difícil posição: ainda que o sujeito seja atravessado pelo real, isso não o torna apenas vítima das circunstâncias; diante dos desdobramentos, sua responsabilidade não se torna menor. Responsável pelas escolhas, (mesmo diante daquilo que não se escolhe[8]), inclusive, diante dos eventos que lhe despedaçam, será o sujeito, aquele que terá de se haver com o incalculável, o trágico e o abissal que atravessa ou pode atravessar a sua existência. Poucas horas após o ocorrido, muitos terão de reconhecer corpos dos entes queridos no Instituto Médico Legal; muitos terão de buscar abrigo seguro, terão de emitir documentos, buscar assistência social… Em meio a tanto desamparo, a vida não espera por uma condição ideal!
Freud já demarcava, desde as origens da psicanálise, que o’desamparo inicial’[9] se constituía como a marca própria de cada sujeito … que demarca o limite possível de elaboração de cada um, que com efeito e como efeito tem de lidar com aquilo “que se repete, insiste, persiste e retorna no mesmo lugar”. Estando o sujeito, ao longo da vida sempre suscetível aos efeitos do Real, o mesmo passa a se impor como a questão que o sujeito do inconsciente tem de responder (…) O Real é o que sujeito não sabe dizer, o que ignora[10], mas nem por isso consegue, por simples escolha, se desvencilhar. O Real cobra, impreterivelmente, um fazer algo com ele.
Ao nos depararmos com situações traumámuticas, observamos que elas podem levar a encontros terríveis com a posição de limitação e desamparo do sujeito. Como resultado, em ocorrências agudas como nos desastres naturais que representam uma grande ameaça à integridade física e à vida, estas impactam os sujeitos, resultando em consequências inimagináveis e muitas vezes impossíveis de serem simbolizadas.
Diante do cenário descrito, fica a difícil tarefa de delimitar qual seria o papel possível do analista diante de uma catástrofe dessa magnitude.
[1] Voltaire (1755). O poema sobre o desastre de Lisboa – Trad. Vasco Graça Moura, Alêtheia Editores, Lisboa, 2013.
[2] Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) esta foi a pior chuva registrada em Petrópolis desde 1932, quando o mesmo começou a fazer medições.
[3] Gerbasse, Jairo. O encontro do Real in: Estilete. Boletim da Associação Fóruns do Campo Lacaniano. Maio de 2004. p.4-p.6, Salvador , 2004.
[4] Lacan, J (1975) Resposta a uma pergunta de Marcel Rtter a Jacques Lacan in :Las Lettres de l’École freudienne n.18. Journée dês cartels. Introducion aux sèances de travail, 1976. Disponível em: https://goo.gl/snmdhp
[5] Freud, S. (1929) O mal-estar na civilização in: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XXI. Rio de Janeiro, Imago, 2006. p. 85
[7] Freud, S. (1915) Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte. In: Cultura, Sociedade e religião. O mal-estar na cultura. Tradução: Maria Rita Salzano Moraes. Rio de Janeiro, 2020.
[8] Lombardi, Gabriel. O compromisso e o encontro in: Revista Stylus, Rio de Janeiro n.18, p13-21 abril de 2019.