Celebrar o quê?
Rúbia d’Alessandro
“Vamos celebrar epidemias é a festa da torcida campeã (…)
Vamos festejar a violência e esquecer a nossa gente, que trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada (…)
Vamos celebrar o horror de tudo isso com festa, velório e caixão (…)”
Perfeição, Legião Urbana (1993).
Na origem, a pulsão de morte se manifesta pelo movimento do aparelho psíquico de eliminar os estímulos, sendo que estes são tomados como um objeto, ou seja, como um outro. Freud diz: “Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, objetos e o que é odiado são idênticos. (…) Sentimos a repulsão do objeto, e o odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se ao ponto de uma inclinação agressiva contra o objeto – uma intenção de destruí-lo.(1). O que, inicialmente, é sentido como algo “orgânico”, permanecerá na relação com o outro. Daí, conclui-se que: “(…) o ato de obtenção do domínio erótico sobre o objeto coincide com a destruição desse objeto (…). Onde quer que o sadismo original não tenha sofrido mitigação ou mistura, encontramos a ambivalência familiar de amor e ódio na vida erótica.”(2).
Segundo Freud, só o amor pode impedir as barbáries do grupo (3). É interessante uma fala de Lacan sobre isso: “Toda ordem, todo discurso aparentado ao capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coisas do amor, meus bons amigos.”(4). Que não haja “con-fusão”: o “amor” pelo líder, a união dos irmãos onde todos são iguais, não se trata de amor, mas de uma alienação; não há separação aí. O grupo incita ao ódio pelo que não é espelho; o grupo segrega.
A civilização tem a função de barrar a pulsão e o ódio com o estabelecimento de instituições e leis – o que se distingue da lei tirana de alguns que, infelizmente, acontece. Freud fala que a civilização tem a função de distribuir e manter a riqueza, bem como de protegê-la da destruição. Ele diz que há uma tendência do homem a destruir tudo o que foi construído, inclusive a ciência e a tecnologia (5). Freud, sempre atual… e socialista. A civilização visa a proteção de qualquer espécie de abuso, mas também estabelece a força como uma virtude que é aceita nos costumes. (6).
Lacan fala que o supereu, o eu e o isso deveriam guiar o pedagogo, o político e o legislador. (7). Antes disso, Freud diz, em “O Mal-Estar na Civilização” (1930 [1929]), que sempre haverá uma falha nessa busca de barrar a pulsão; daí a impossibilidade de governar, educar e analisar. Sabe-se que é dessa impossibilidade que Lacan desenvolve os 4 discursos (Discurso do Mestre, Discurso da Histérica, Discurso Universitário e Discurso do Analista). Ora, o laço social advém da linguagem, da fala, dos discursos – eis o que faz um enquadramento da agressividade, do ódio, ou seja, da pulsão. A fala substitui a passagem ao ato. Mas se o discurso coloca uma barra na pulsão, ele se depara com a falha. Há algo na fala e nos discursos que não passa, que não se traduz, que é impossível e que se trata do Real. O circuito, então, não tem fim, não se fecha; portanto, prossegue.
Lacan desenvolve os 4 discursos no Seminário 17 (1969 e 1970), mas só depois ele desenvolverá o Discurso do Capitalista. Diferente dos 4 discursos, no Discurso do Capitalista, o circuito se fecha e a falha, ou seja, o Real é foracluído. Em “O Saber do Psicanalista”, Lacan afirma: ” O que distingue o discurso do capitalista é a Verwerfung, a rejeição; a rejeição fora de todos os campos do simbólico com aquilo que eu já disse que tem como consequência a rejeição de quê? Da castração.” (8). Na Conferência de Milão, de 12 de maio de 1972, Lacan fala que a estrutura dos discursos e da fala é um grupo de elementos (S1, S2, $ e a) aberta e fechada. Os elementos giram, em 1/4 de volta, em lugares específicos. Não será possível trabalhar cada discurso, mas o interessante aqui é observar as setas dos matemas dos 4 discursos e as do Discurso do Capitalista. Que se siga cada seta dos matemas abaixo com um lápis – com o dedo que seja. É possível observar que nos 4 discursos (do mestre, da histérica, universitário e do analista), o circuito não se fecha. Isso que não se fecha é o impossível do discurso (o Real, a falha já mencionada). Seguindo o lápis no Discurso do Capitalista, observa-se que ele se fecha num oito deitado. É por se fechar que o Discurso do Capitalista foraclui o Real. A falha não aparece. Essa é a perfeição do capitalista: tudo fechadinho, tudo completinho, retratado na música “Perfeição”, denunciada pelo Russo… ops! quer dizer, pelo Renato Russo. Lacan também fala que a simples inversão da direção, ou seja, da seta entre S1 e $ do Discurso do Mestre e do Discurso do Capitalista (vide os matemas abaixo), faz com que a coisa ande depressa demais na direção do consumo – depressa até que se consuma. (9). E ele prossegue: “(…) a crise, não do discurso do Mestre, mas do Discurso Capitalista, que é o substituto dele, está aberta.” (10). É isso mesmo, Lacan diz que a crise do Discurso Capitalista está aberta, diz que o capitalismo está fadado (na sua busca de consumo desenfreado) a se consumir. O circuito do capitalismo selvagem tem a lógica da cobra mordendo o próprio rabo. O capitalismo vai se engolir. Eis um Lacan marxista? Lacan chega a dizer que o Discurso do Capitalista é insustentável e, ainda, que ele é loucamente austucioso; por isso, destinado a explodir. (11). Quando? Não se sabe, mas aí sim: celebrar!
(1) FREUD, S. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996. p. 141-142.
(2) ___________. (1920). Além do Princípio de Prazer. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996. p. 64-65.
(3) _________. (1921). Psicologia das Massas e Análise do Eu. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996. p. 151.
(4) LACAN, J. (1971-72). O Saber do Psicanalista. (inédito). In: Centro de Estudos Freudianos do Recife, Recife, 1997. p. 49.
(5) FREUD, S. (1927). O futuro de uma Ilusão. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996. p. 16.
(6) LACAN, J. (1948). Agressividade em Psicanálise. In: Escritos. RJ: Jorge Zahar, 1998. p. 122-123.
(7) LACAN, J. (1950). Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”. In: Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar, 2003. p. 131.
(8) LACAN, J. (1971-72). O Saber do Psicanalista. (inédito). In: Centro de Estudos Freudianos do Recife, Recife, 1997. p. 49.
(9) LACAN, J. (1972). Conferência de Lacan em Milão de 12 de maio de 1972. (inédito). Versão eletrônica em português: www.trilhardotorg.wordpress.com.
(10) Ibdem.
(11) Ibdem.
Bibliografia
FREUD, S. (1950 [1887-1902]). Projeto para uma Psicologia Científica. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago,
_________. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996.
_________. (1920). Além do Princípio de Prazer. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996.
_________. (1921). Psicologia das Massas e Análise do Eu. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996.
_________. (1927). O futuro de uma Ilusão. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996.
_________. (1930 [1929]). Mal-estar na civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 14. RJ: Imago, 1996.
LACAN, J. (1948). Agressividade em Psicanálise. In: Escritos. RJ: Jorge Zahar, 1998.
_________. (1950). Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”. In: Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar, 2003.
_________. (1969-70). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. RJ: Jorge Zahar, 1992.
_________. (1972). Conferência de Lacan em Milão de 12 de maio de 1972. (inédito). Versão eletrônica em português: www.trilhardotorg.wordpress.com.
_________. (1971-72). O Saber do Psicanalista. (inédito). In: Centro de Estudos Freudianos do Recife, Recife, 1997.