Sobre Frances e Marianne: devastação, a outra face do amor (?)
Gabriela Barreto
O enigma da feminilidade é trazido por Freud em seu artigo de 1933 intitulado “A Feminilidade”. Nele Freud já aponta que a psicanálise não se coloca na posição de querer descrever o que é a mulher – isso seria uma tarefa impossível – mas sim pesquisar como ela se torna mulher.
Histórias, músicas, e também na clínica psicanalítica, ou seja, na arte e na vida, o enigma em torno da feminilidade, “do que quer uma mulher?”, persiste. Isso fez com que escritores e psicanalistas se debruçassem sobre essa questão e sobre o modo de amor das mulheres.
A relação entre psicanálise e literatura é um tema já recorrente em diversos espaços: encontros, artigos, pesquisas, dentre outros. Freud, desde o início de sua descoberta, nos convoca a aprender com os escritores e outros artistas quando o saber psicanalítico encontra seu limite.
A escrita de algumas autoras, como Clarice Lispector, Marguerite Duras, Elena Ferrante e a mais recente que li Sally Rooney, tem me feito pensar sobre a tentativa de escrita do real. A partir da construção de personagens femininas que (re)velam a face dura, crua do real, daquilo que é impossível de ser representado, mas que ex-siste, (r)existe, e retorna. Retorna e permeia esse tornar-se mulher diante da devastação que assola e marca a trajetória dessas personagens.
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, esse dizer eternizado por Simone de Beauvoir (1967) coaduna com a concepção psicanalítica em torno do feminino: não há natureza feminina, esta é uma trajetória marcada por um esforço de construção, havendo algo do feminino que é impossível de se representar.
Diante das questões suscitadas em virtude, especificamente, da leitura de Sally Rooney, o presente trabalho busca discutir, através de duas de suas personagens, Marianne e Frances, o conceito de devastação, sua relação com o amor e com o feminino, e a tentativa da autora em (d)escrever sobre o real. Duas mulheres marcadas por um não lugar no desejo de seus pais e “criadas” por mães omissas; uma escrita que visa traduzir o que o corpo tenta exprimir (ou seria oprimir?), o real que retorna sempre ao mesmo lugar e o lugar que ele (re)cobre.
A devastação, como a outra face do amor (?), faz parte do percurso dessas mulheres. Nessa relação de devastação, o sujeito carece de seu lugar, disponibiliza seu corpo para o outro, um sujeito reduzido ao silêncio, um corpo marcado por um excesso, que mais parece um buraco negro. Relações que desconhecem limites. Como diz Lacan, em “Televisão”, a ponto de não haver limites para as concessões que se faz a um homem: seu corpo, sua alma, seus bens, entregues.
Na devastação a mulher apresenta uma dificuldade em estar no lugar de causa de desejo do homem, já que ela também quer ser seu objeto amado, demandando sempre mais amor. Nesse caso, ela se submete ao gozo do Outro em uma angústia sem fim, consentindo em ser um objeto humilhado, ocupando lugar de dejeto. Na insistência de ser atendida em sua demanda, na qual nunca se acha suficiente, comparece não o amor, que pressupõe a falta, mas sua face mais real, de puro gozo. O preço que esta mulher paga nessa experiência pode lhe levar ao extremo, ao ponto dela se sentir aniquilada como sujeito. Tanto na relação mãe-filha, quanto nas parcerias amorosas, há o ponto em comum de uma demanda ilimitada de amor.
Estas parcerias amorosas demonstram o quanto essa mulher escolhe fazer parceria com um homem que pode lhe machucar. Seja quando Marianne busca e provoca um sexo marcado pela violência física e psicológica, ou quando Frances adoece e se deixa tomar pelas dores da endometriose sem procurar cuidar disso, sem cuidar de si. Dores e acometimentos que aparecem como expressões do gozo no corpo feminino.
Marianne ao longo da narrativa vai se (re)construindo e inicia um processo de separação dessa mãe, descola desse lugar, e se recoloca em sua relação amorosa permitindo-se ser amada. Para constituir-se como mulher, ela se separa da figura fascinante e persecutória da mãe. Com a separação um outro lugar é inscrito no seu corpo, um lugar aonde o gozo aparece (de uma outra forma): um gozo e um corpo que já pode chamar de seus, separados dos da mãe.
Já Frances vai poder se haver com esse gozo pela via da escrita. Escrita que (re)aparece como um certo destino do feminino, um certo destino contingente do feminino impossível de se inscrever. A arte é um lugar de tentativa, um lugar privilegiado onde esse gozo outro se manifesta e a escrita dá, então, su-porte ao gozo suplementar.
Todavia, enquanto Marianne atravessa esse lugar e se coloca a partir de um novo saber fazer diante dos impasses do feminino, Frances segue repetindo, se testando, se ferindo, testando o outro. É isso: repetir, repetir, repetir…até poder fazer diferente e se reinventar, quem sabe, fazer uma outra coisa com esse buraco que lhe marca. Buraco que, com uma tesoura, ela crava a pele…
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, M. S. Devastação feminina: a outra face do amor, 2018
FREUD, S. (1933). Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXII.
LACAN, J. (1974). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 448-497, 2001.
SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Ed. Campus-Elsevier, 2002.