O AMOR CONTEMPORÂNEO: do encontro com o acaso ao risco zero
Margareth Felipe [1]
O amor é um sentimento universal, que se modifica ao longo dos tempos e, em cada época, tem sua forma de se apresentar. Nos tempos atuais, o amor passou a habitar as redes sociais – o Facebook, o TikTok, o Instagram, o WhatsApp e os aplicativos de encontros. Tornou-se usual escutar expressões do tipo: bloqueou, stalkeou, está seguindo/deixou de seguir, curte tudo/não curte tudo e em relacionamento sério. Surgiu também uma ampla oferta de possíveis objetos amorosos, que podem ser selecionados – quando e com quem -, usando-se de certa racionalização até a efetivação de um encontro presencial.
É um novo ritual de aproximação do sujeito com o objeto do amor. Uma forma de encontro que ultrapassou o campo do singular, passando para o coletivo, de modo que o amor passou a ser mediado por um Outro público – a rede social.
O amor buscado pelas redes sociais fez com que fossem abolidas as circunstâncias não previstas e não calculadas, para que ele pudesse ser encontrado sem sobressaltos. É o tempo do risco zero no amor.
Essa forma de proceder não está dissociada do modo de ser contemporâneo, no qual o modelo capitalista estimula a competitividade – sem tempo a perder -, transformando o sujeito em uma empresa de si mesmo.
O sujeito investe sua libido em tudo que possa torná-lo rentável e capaz de concorrer com os demais, estimulando um culto exacerbado ao narcisismo, que teve seus limites extrapolados. Esse investimento em si mesmo tem como consequência a retirada do Outro – lugar de endereçamento da palavra. O Outro é a outra cena que localiza e situa o sujeito na sua história, fazendo-o perceber-se e reconhecer-se na sua alteridade. Portanto o sujeito do inconsciente constitui-se enquanto sujeito de um significante e inscrito no lugar do Outro.
A degradação do Outro provocou no sujeito uma atopia, refletindo um tempo em que os sujeitos, por um lado, têm uma ampla margem de escolha – ser o que desejam ser – e, por outro, parecem confundir a noção de identidade com a de indivíduo.
Essa atopia fez com que o amor fosse banalizado enquanto experiência significativa na vida do sujeito. Sem o Outro a quem dirigir a palavra e situar o sujeito, como este pode enamorar-se? Pois o encontro com o amor exige riscos. Ele impõe ao sujeito uma abertura à imprevisibilidade, um encontro com o acaso. Um encontro para viver um paradoxo, em que dois tentam tornar-se um e, a partir dessa possibilidade, ocorre a construção de uma verdade, sempre renovada a cada encontro amoroso.
O amor faz com o sujeito se retire do seu encapsulamento narcísico, indo além de si mesmo, e se confronte com a alteridade. Quando o sujeito reconhece a alteridade no Outro, o amor traz para ele o reconhecimento de sua própria alteridade e, ao mesmo tempo, o faz tolerar as diferenças, por fazer a mediação nas relações amorosas. Desse modo, o amor é a ilusão necessária para suportar a alteridade: o amor é o que vem a suprir a relação sexual que não existe[2].
Portanto abrir-se à experiência amorosa é assumir a intrusão de um Real, esse fora de sentido que atualiza a vivência de uma disjunção. Porque o amor é o que faz com que o sujeito procure no Outro a resposta, a verdade e a consistência do ser, possibilitando uma união em que há o impossível. Um impossível que leva o amor a sempre inscrever-se na existência do sujeito. E a demanda de amor, sempre renovada, caminha enigmática como na música (…) não despedace o coração/ o verdadeiro amor é vão/ estende-se infinito, imenso monolito/ nossa arquitetura/ quem poderá fazer/ aquele amor morrer/ nossa caminhadura[3]?
Entretanto o amor ganha ares de contemporaneidade e, por estar inserido nos discursos, os sujeitos sofrem seus efeitos, mas não da mesma maneira e intensidade. As patologias do amor surgem no cotidiano e na clínica: curtas experiências amorosas e decepcionantes, muitas trocas de parceiros, acompanhadas de angústia, sofrimento e depressão.
Não cabe à psicanálise responder às questões dos tempos atuais – os problemas sociais e políticos – reduzindo tudo a uma interpretação do psiquismo humano, porque, assim, provavelmente, cairia no dogmatismo. Entretanto, para estar à altura do seu tempo, ela deve procurar compreender como o sujeito pode ser afetado pela determinação da ordem simbólica em que está inserido.
A psicanálise trata do singular, não do coletivo, indagando sobre a responsabilidade do sujeito – ser responsável de si e por si. Indagar não é culpabilizar o sujeito, mas investigar sobre a postura ética – a ética do desejo – diante das decisões da vida. A ética do desejo é a solidão de um ato: cada um tem que realizá-lo sozinho, enquanto sujeito que está sempre a constituir-se.
Portanto, como uma convocatória ao VI Colóquio da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Rede Diagonal Brasil (21e 23/10/22), pode-se indagar: Qual a contribuição da psicanálise para esse sintoma contemporâneo, em que o Outro sofre uma atopia, e o amor, enquanto experiência importante para a existência humana, passou a ser precavido e desvalorizado?
[1] Psicóloga, Psicanalista, Membro da EPFCL-RDB, Mestre pela Universidade Complutense de Madrid/ES -Filosofia, Psicanálise e Arte.
[2] Lacan, J Sem 20. Mais Ainda. Ed Zahar. RJ
[3] Gilberto Gil, Drão