Elogio do diagnóstico
Convenhamos que o sintagma “diz-função…” remete, queiramos ou não, a um jogo de palavras, que, recorrendo à homofonia (ou a homonímia moderna), produz a mesma sequência sonora para designar várias coisas. Isso em benefício de um equívoco forjado, com o objetivo de encontrar as razões de um questionamento no uso das categorias diagnósticas “na atualidade” da prática psicanalítica.
No fundo, não passa de um tropo retórico, buscando um efeito de sentido ao apostar numa suposta eficácia inconsciente (une-bévue) – o que, evidentemente, não é o caso. Sabemos que o último Lacan, nas pegadas de Joyce e na perspectiva do real, usou e abusou dessa estratégia.
Nada melhor para tratar um assunto do que começar questionando-o, pois “a própria questão é o caminho”, já dizia Heidegger.[1] O que é isto – o diagnóstico? Por que o diagnóstico, em vez do “não-diagnóstico”? Função, que função?
Se “diagnóstico”, trata-se de uma abordagem classificatória no trato dos fenômenos mentais, de seguir as trilhas da fenomenologia existencial ou da iluminação dos seus mecanismos internos para além de sua descrição superficial?
É certo que Freud se serviu das classificações ao seu dispor (basta ver os títulos dos seus casos clínicos), mas com o intuito de desvendar seus mecanismos secretos, mesmo quando se aventurou a propor novas entidades clínicas, novos nomes, ou novos arranjos clínicos decorrentes de seus remanejamentos teóricos.
Lacan, na primeira parte do seu ensino, não escapou dessa tendência, ao privilegiar as estruturas clínicas. Quando voltou atrás na sua primeira concepção da fobia; quando, dentre as formas de psicose, deu destaque à paranoia; quando foi parco em relação à esquizofrenia; quando inventou a “doença da mentalidade” ou a tal “histeria rígida” e até mesmo o “sinthome”, sempre foi mais por razões metapsicológicas do que por preocupações classificatórias.
Até a psiquiatria, cujas escolas, alemã e francesa, devemos uma clínica classificatória apoiada na observação de um minucioso espectro semiológico comum, parece ter se rendido a um novo discurso, colocando astuciosamente tudo sob o manto protetor de um novo gênero chamado “transtorno”. Forma cavilosa de abrigar sob uma só rubrica as mais variadas espécimes, – “oves et boves et universa pecora”, como diriam os antigos. Lineu ia morrer de inveja ao descobrir essa nova modalidade taxinômica. Com isso, até as nossas velhas neuroses, entendidas no sentido psicanalítico, foram para o beleléu, a histeria puxando a fila, pese o esforço inovador do nosso bravo Christopher Bollas.[2]
É compreensível, assim, que, até por um “efeito de halo”, na paróquia lacaniana, as várias capelas disputem seu quinhão e sua glória, da perversão às psicoses generalizadas, sem esquecer as já citadas histeria rígida e as doenças da mentalidade, mesmo que nem sempre se saiba exatamente o que isso significa.
Independentemente, portanto, de sua especificidade, não é de admirar que os psicanalistas se questionem sob o alcance e os limites do diagnóstico na sua prática atual. Para além dos compreensíveis condicionamentos impostos pela evolução do discurso científico ou social, resta saber o porquê desse questionamento na atualidade. Os da paróquia sabem que a resposta não está apenas num suposto discurso social dominante (afinal a psicanálise, enquanto tal, sempre se passou dele), mas nos rastros que nos deixou o último Lacan.
Se nos voltarmos agora para a “função”, resta saber se estamos navegando nas águas da função matemática, tão ao gosto de Lacan (função paterna, função fálica, função de gozo, verdade como função), cujo eficácia depende do valor do argumento, ou se circulamos prosaicamente no registro da utilidade. Nesse caso, seria o caso de se perguntar: para que serve o diagnóstico? Qual sua utilidade prática? Ora, todo mundo sabe que ideias, métodos e práticas, tal como as coisas, com o tempo podem perder sua função, a ponto até de se tornarem obsoletas. Não seria esse o caso da função diagnóstica na prática atual da psicanálise, impulsionado pela perspectiva do real que Lacan nos deixou como horizonte? É o que parece. E é por aí que a questão avança, mesmo que não se resolva.
Apesar disso, por que não fazer o elogio do diagnóstico? Afinal, pese as últimas elucubrações de Lacan (particularmente os Seminários 24 e 25), ele mesmo reconhece que a opacidade do gozo do sintoma só se resolve pelo recurso ao sentido, mesmo que seja ao preço de uma tapeação.[3] Neste caso, vale apelar sim, sob pena de leviandade, para a dimensão racionalista da psicanálise, tanto na relação analítica em si mesma, quanto no tratamento do sintoma, regidos que são pelas mesmas leis da linguagem, ressalvada a sutileza que escapa aos padrões rígidos da racionalidade, aliada à incidência da causa subjetiva singular. Nesse sentido, é legítimo lembrar, a título de recurso convergente, o separar para discernir a que nos autoriza a própria etimologia grega, desde a Grécia Antiga até o florescimento das classificações no século XVIII.[4] Mas, admitido que existam tipos clínicos, isso não implica que uma mesma estrutura produza forçosamente o mesmo sentido. Dora não é Anna O. Emma não é a “bela açougueira”. É por isso que, para além de qualquer singularidade que caracterize uma classificação, só existe análise do particular.[5]
LUÍS ANDRADE
Psicanalista, Psicólogo. Membro da EPFCL- RDB- João Pessoa, Doutorado na Universidade Católica de Louvain – Bélgica, Prof. Titular (aposentado) da UFPB.
[1] Heidegger, M. “Was is das – die Philosophie” , in Stenier, G. Heidegger. Lisboa: Publicações Dom Quixote Lda. 1990, pg. 30.
[2] Bollas, C. Histeria. São Paulo: Escuta, 2000.
[3] Cf. Lacan, J. 1979: “Joyce, o Sintoma” in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003, pg. 566.
[4] Cf. Foucault, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp.171-225.
[5] Cf. Lacan, J. 1973: “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” in Outros Escritos, pg.554.