Prelúdio do Espaço Escola:
Passar a apresentação[1]
Lacan considerava indispensável que o analista fosse pelo menos dois: o que causa o trabalho analisante e o que teoriza seus efeitos. Cada uma dessas posições controla os extravios da outra, realiza seu controle o contro-role. Ocasião para revisar a interação entre ambas, em cada uma das práticas atuais do analista.[2]
Um século depois o diagnóstico de Freud: O mal-estar na civilização (1930) e a sua resposta inédita a descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise; hoje poderíamos colher esta oportunidade para fazer uma atualização do diagnóstico analítico, do mal-estar e também uma nova avaliação[3] dos meios pelos quais a psicanálise pode responder a ele.
Para Lacan, a psicanálise faz parte do mal-estar na civilização e até mais do que isso: ela é o seu sintoma, dizia ele em 1974[4]. A psicanálise surgiu como sintoma no início do século XX, momento de expansão do discurso da ciência, que justamente não quer saber nada sobre o sujeito. Esta constatação não nos diz a causa do mal-estar, e precisamos chegar à causa se quisermos ter alguma chance de incidência nele.
No seu retorno a Freud, Lacan estabelece o que Freud chamou de civilização em termos de discursos[5], especificando cada tipo de laço social. Cada discurso faz laço e recurso contra o mal-estar, com exceção do discurso capitalista, pouco social e indiferente aos assuntos de amor – este liga antes o indivíduo aos seus produtos – com efeitos de esgarçamento sobre a coesão social e multiplicando laços precários. Assim, temos o discurso do capitalismo e o do inconsciente. Perante a multiplicação de ofertas para lidar com o mal-estar sem passar por um desejo de saber, Lacan faz valer, ao contrario, a especificidade da oferta de Freud: o inconsciente só responde a quem o invoca, no discurso do analista que estabelece a sua práxis.
Freud começou pela decifração dos sintomas, encontrando o sentido sexual que sustenta o fantasma. Lacan encontra nisso (o sentido dito sexual) a prova da não-relação sexual, fórmula que segundo ele se infere de todos os ditos de Freud. A clínica nos ensina que essa via está sempre aberta no que não é nem realidade sexual nem fantasma, mas sintoma – vindo no lugar dessa não-relação, com seu núcleo real, fora do sentido. Com Lacan, então, é preciso voltar a perguntar-nos sobre o que funciona na psicanálise para que ela possa, como o faz, tocar as contingências dos gozos, causa do mal-estar dos sujeitos que recebemos. «O operador que faz funcionar a psicanálise é o ato de dizer, o ato-dizer, a não esquecer. […] Somente o dizer testemunha da ex-sistência, ele não tem por significado a verdade, que é o significado dos ditos. […] Para todos os sujeitos hoje cada vez mais disjuntos dos laços, e independentemente das estruturas clínicas, entrar e permanecer em uma prática que faz ex-sistir, e ex-sistir num laço, como poderia não ter um valor inestimável?»[6]
Ao diagnóstico de “mal-estar”, formulado por Freud, Lacan respondeu contrapondo aos impasses crescentes de nossa civilização uma crítica em ato, fundando novos dispositivos nas formações clínicas[7] e nas sociedades analíticas. Em 1964, para objetar os efeitos de grupo, Lacan introduziu um novo significante: Escola. Em 1967, ele propôs um dispositivo igualmente novo: o passe[8]. Ele funda a Escola não sem clínica, para nos lembrar que sem clínica não há psicanálise. É por isso que, à teoria, agregou à demonstração clínica, inseparável de sua práxis: a apresentação clínica[9] – dispositivo que, pelas Formações clinicas do Campo lacaniano, assumimos nos Colégios de Clínica Psicanalítica (CCP). Esses dois dispositivos que ele inventou – passe e apresentação – se fazem eco um ao outro. Um, mira a fazer um diagnóstico analítico atualizado do mal-estar, a explorar e passar a clínica psicanalítica com a sua ética, que é a práxis de sua teoria. O outro, visa a fazer avançar a indagação sobre as vicissitudes da pulsão submetida ao tratamento analítico mirando ao desejo do analista. Para assegurar que o desejo transformado que uma psicanálise pode produzir passe à elaboração do saber específico que se deposita, com Lacan podemos responder através de uma instituição reinventada com seus novos dispositivos, assumidos pelos Fóruns, os Colégios de Clínica Psicanalítica e a Escola: IF-EPFCL.
DIEGO MAUTINO – A.M.E. da EPFCL, Membro da EPFCL–Itália, Ensinante no Colégio de Clínica Psicanalítica Onlus, Responsável Clínico do Centro de Consulta Psicanalítica, Psicanalista em Roma.
[1] J. Lacan, «Contribuindo para o 50° aniversário do hospital Henri-Rousselle, pelo favor que eu e os meus aí recebemos, em um trabalho onde indicarei o que ele sabia fazer, ou seja, passar a apresentação» [passer la présentation]. Dans « L’étourdit », Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 449. http://staferla.free.fr/Lacan/L’etourdit.pdf
[2] «O analista e o clinico», VI Simpósio Interamericano e Jornada de Escola IF-EPFCL, Buenos Aires 2025, Apresentação do tema, Carolina Zaffore – Gabriel Lombardi.
[3] Por ex.: a questão da operação analítica que deve ser reformulada a partir do que precisamos chamar o impasse da verdade em relação ao real. Lacan elaborou esse impasse, que pode ser considerado propriamente lacaniano.
[4] «Eu a defino como sintoma – revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. […] Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está funcionando.» J. Lacan, Le Triomphe de la religion [Conférence de presse au Centre culturel français – Rome, le 29 octobre 1974], Paris, Seuil, 2005, p. 81.
[5] J. Lacan : «Há apenas isso, o laço social. Eu o designo com o termo discurso. O laço social só se instaura e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga [ce qui grouille], isto é, o ser falante.» O Seminário, livro 20, Mais, ainda, Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p. p. 174.
[6] C. Soler, « Le malaise vu de la psychanalyse », Dans Revue Champ lacanien n°18 : Le psychanalyste dans le monde d’aujourd’hui, 2016, p. 26-8.
[7] Cf. As apresentações de pacientes que Lacan praticou de 1953 a 1980, fundando um dispositivo orientado pela psicanálise e do qual ele precisou a estrutura em três termos: o analista, o paciente engajado na sua posição subjetiva e o público de praticantes que ele disse o “terceiro”, enquanto escuta o paciente e pode vir completar na discussão o material da entrevista clínica. A práxis clínica das apresentações de Lacan, novidade renovada nos Colégios clínicos (FCCL) desde 1998. Visitar «Presentazione Clinica» no site: www.praxislacaniana.it
[8] Participação na atividade do Espaço Escola do VIII Colóquio da Rede Diagonal Brasil, sob o tema proposto: “Porque o passe?”
[9] Ver. Nota 1.