A análise para além dos diagnósticos
O diagnóstico na psicanálise é um fenômeno que incorpora uma ambiguidade essencial por refletir a tensão entre a necessidade de categorização dos distúrbios psíquicos e a complexidade do sujeito singular.
Para compreender melhor essas dinâmicas, é útil integrar as contribuições de figuras fundamentais como Lacan, Soler, e Dunker, além de considerar o famoso caso do Menino dos Lobos de Freud, que aborda como a interpretação deve levar em conta a complexidade simbólica e a especificidade da experiência subjetiva, ensinando que a análise está adiante do uso de um diagnóstico. Cada uma dessas perspectivas oferece uma visão única sobre o papel do diagnóstico e as nuances que envolvem a singularidade do sujeito.
Colette Soler, em A Querela dos Diagnósticos (2018), critica a tendência dos sistemas diagnósticos, como o DSM-5, de reduzir a complexidade do sofrimento psíquico a categorias rígidas e normativas. Soler argumenta que essa abordagem pode obscurecer a riqueza da experiência subjetiva e limitar a compreensão da singularidade do sujeito, apesar de, segundo ela, nós, psicanalistas, não devermos renunciar ao diagnóstico trazido pelo paciente, conforme afirma: “Na medida em que seguimos o ensino de Lacan, não podemos prescindir do diagnóstico. Em geral, justificamos isso em nome da possível psicose do paciente que nos consulta” (p. 26). Para Soler, o diagnóstico não deve ser visto meramente como um rótulo técnico, mas como um ponto de partida para uma exploração mais profunda da subjetividade. A crítica é direcionada ao risco de o diagnóstico se transformar em um dispositivo de normalização, desconsiderando a complexidade e a individualidade do sujeito.
O Seminário 3, intitulado As Psicoses, é fundamental para compreender a abordagem estrutural de Lacan ao diagnóstico, especialmente no contexto das psicoses. Ele destaca como a análise deve ir além dos sintomas, para compreender a estrutura psíquica subjacente do sujeito, e propõe que o diagnóstico deve ser compreendido dentro das estruturas psíquicas e das relações simbólicas que moldam a experiência do sujeito. Para ele, o diagnóstico não é um fim em si mesmo, mas um ponto de partida para a análise das relações entre o Simbólico, o Imaginário e o Real. Lacan argumenta que o diagnóstico deve ser flexível e adaptado às especificidades do sujeito, funcionando como uma ferramenta para entender as estruturas inconscientes e as dinâmicas psíquicas envolvidas. Assim, o diagnóstico deve permitir uma exploração mais rica e dinâmica do sofrimento psíquico, respeitando a profundidade da experiência subjetiva.
Christian Dunker, em Reinvenção da Intimidade (2018), apresenta uma crítica contemporânea das práticas diagnósticas, especialmente em relação ao DSM-5. Dunker examina como esses sistemas podem reduzir a riqueza da experiência subjetiva a categorias simplificadas e normativas. Para ele, a prática clínica deve equilibrar a utilidade das categorias diagnósticas com uma abordagem que preserve a singularidade do paciente, permitindo uma compreensão mais rica da psiquê. O diagnóstico deve ser um ponto de partida para uma investigação detalhada e personalizada do sofrimento do sujeito e não um rótulo fixo que limita a compreensão da experiência interna.
No caso do Menino dos Lobos, Sigmund Freud abordava o diagnóstico na psicanálise de maneira que refletia sua compreensão inovadora da psiquê e do processo analítico. Embora Freud não usasse o termo “diagnóstico” com a mesma conotação técnica que se vê hoje, desenvolveu métodos e conceitos que podem ser considerados diagnósticos no contexto de sua prática clínica. Usando o caso descrito por ele em Histórias de Neuroses Infantis (1918), temos um exemplo clínico que ilustra a complexidade do diagnóstico psicanalítico. Freud detalha como o diagnóstico e a interpretação dos sintomas do menino foram intrinsecamente ligados às suas experiências simbólicas e aos conflitos inconscientes. Esse caso evidencia a importância de considerar não apenas os sintomas manifestos, mas também o contexto simbólico e imaginário que delineiam a experiência do sujeito. Ele mostra como a interpretação dos sintomas deve ir além da mera rotulação, envolvendo uma compreensão mais profunda das dinâmicas internas e das estruturas psíquicas.
O ponto em comum que pude observar entre as perspectivas de Freud, Lacan, Soler, e Dunker é que eles, apesar de ponderarem que os psicanalistas devam levar em conta o diagnóstico trazido pelo paciente, mostram que a abordagem psicanalítica deve considerar, principalmente, a fala do paciente com suas idiossincrasias. Soler propõe uma abordagem crítica do diagnóstico para evitar a normatização, enquanto Lacan destaca a importância das dimensões simbólicas, das estruturas clínicas e dos aspectos inconscientes. Dunker, por sua vez, enfatiza a necessidade de ir além da mera rotulação e categorização e ainda critica a redução da experiência ao diagnóstico normativo, sugerindo que a prática deve respeitar a particularidade do sujeito.
Portanto, o diagnóstico na clínica psicanalítica deve ser abordado com uma sensibilidade que reconheça, respeite e valorize a singularidade da fala do sujeito. É crucial equilibrar a utilização do diagnóstico com uma atenção às nuances e complexidades da experiência subjetiva, promovendo uma prática analítica que seja, ao mesmo tempo, rigorosa e atenta. Como evidenciam Soler, Lacan, Dunker e Freud, o desafio é usar o diagnóstico não apenas como uma ferramenta de categorização, mas como uma estrutura inicial, com uma escuta que possa, durante o processo da análise, fazer surgir um saber não sabido.
PEDRO ALVAREZ – Membro de Escola da EPFCL-RDB – Niterói, Analista Praticante
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, Sigmund. Histórias de Neuroses Infantis. Rio de Janeiro: Imago, 1918.
LACAN, Jacques. As Psicoses [Seminário 3]. Paris: Éditions du Seuil, 1955-1956.
SOLER, Colette. A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2018.
DUNKER, Christian. Reinvenção da Intimidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2018.