Diagnóstico e Indeterminação
Um pouco antes de introduzir uma nova perspectiva clínica, representada pelo sinthome e seu primeiro caso paradigmático, Joyce, Lacan desenvolveu um seminário, usualmente recebido como uma alusão ao tema do nome-do-pai, do qual havia prometido jamais voltar a falar. Podemos considerar Le non Dupe errent como ponto de partida para o que se poderia chamar de uma nova diagnóstica em psicanálise. Esta seria mais uma das tentativas de Lacan de proceder ao que chamo de crítica psicanalítica da razão diagnóstica. Este projeto teria se iniciado com a Tese de 1932 e seu objetivo de conciliar a psicopatologia da escola de Jaspers, baseada na noção de reação da personalidade ao processo mórbido, com a tradição francesa, que insistia na ideia de que os sintomas são gerados pelo desdobramento, pela expansão ou crise, no interior da constituição do sujeito. Introduzir uma noção forte de sujeito, aqui chamada teoria crítica da personalidade e definir um campo de determinação autônoma dos sintomas, ali chamada de psicogênese, definiu, de certa maneira dois polos do programa diagnóstico lacaniano: o sujeito e o significante.
A aplicação do método estrutural com a sua deriva de formalização é a versão mais conhecida deste problema, tomando o ensino de Lacan entre 1954 e 1960. Se poderia dizer que a introdução da noção de objeto a e a procura das formas existenciárias do ser, na alienação e na separação, mobilizam um terceiro programa diagnóstico, desta feita centrado no fantasma. Todavia, depois de 1966, com o fracasso relativo da teoria do ato analítico, Lacan percebe que uma verdadeira crítica da razão diagnóstica deve incorporar uma antropologia da loucura muito além das trocas elementares de parentes e a função classificatória do Nome-do-Pai, pois de fato, como ele previra em 1938, a evolução das formas sociais deslocou o problema central dos sintomas baseados em conflitos para formas de sofrimento derivadas do déficit ou da reificação dos modelos de reconhecimento, sejam eles de caráter ou narcísicos. A teoria dos discursos, com seu inusitado retorno ao problema do reconhecimento, no interior das relações hegelianas entre o senhor e o escravo, fazia surgir assim uma histeria como forma de “laço social”. Menos do que uma reação da personalidade, uma aptidão a produzir sintomas, uma alienação fantasmática, a histeria, protótipo das formas psicanalíticas de sofrimento, é um discurso. Ao que tudo indica esta hipótese, ainda que não inteiramente falsa, deixa de lado um aspecto incontornável da perspectiva psicanalítica: a diferença sexual. É certo que não temos uma diagnóstica da sexuação, mas é de certa maneira a descoberta de um princípio tão forte quanto este na determinação da razão diagnóstica que talvez tenha levado Lacan a retornar aos seus termos de origem: loucura, personalidade, devastação, errância.
Esta história é bem conhecida, mas gostaria de acrescentar aqui, à guisa de começo de conversa para nosso encontro em Aracaju, a ideia de que esta última reformulação, que conduz a uma diagnóstica do enodamento entre os três registros, começa pela discussão sobre o conceito de um e a noção de unidade da experiência, que se pode localizar por todo ensino, mas de forma ainda mais sistemática no Seminário XIX … ou pior.
Poucos perceberam que errent é uma alusão à errância como estatuto pré-moderno da loucura, quando as andanças e “naveganças” dos loucos testemunhavam um sujeito de uma experiência trágica. Uma das maneiras de traduzir errent é por vaguidade ou vagueza, mas também por algo errático. O erro como um dos contrários da verdade, ao lado da mentira, da falsidade, da ilusão e do engano, é uma noção intimamente ligada à teoria do conceito. Erro categorial, chama-se o equívoco na inclusão do gênero à espécie. A teoria da sexuação não introduz apenas uma novidade na teoria do gozo, mas também a ideia de que esta teoria do gozo é uma crítica indireta do conceito de conceito em psicanálise. Não apenas o Begreiffen freudiano, ou seja, o conceito como que pode ser agarrado ou o que nos dá fundamento (Grundbegreiffen), mas a hipótese de que é possível dissolver conceitos, dadas suas propriedades emergentes, seu uso aberto e performativo, sua não auto referencialidade, não identidade e, principalmente, graças a diferença entre universalidade e existência no interior mesmo da formação dos conceitos.
Na conferência aos psiquiatras que redigiam o que veio a se reconhecido como Manual Estatístico de Diagnóstico III, que procurava unificar o léxico e o campo diagnóstico da psiquiatria em 1956, Carl Gustav Hempel, o filósofo da ciência, apresentou seu modelo de “definição operacional” baseado no postulado de que seria possível prover critérios objetivos por meio dos quais qualquer cientista pode decidir, para qualquer caso particular, se um termo se aplica ou não àquele caso. A inspiração para tal teria sido dada pela, à época, recente reformulação do sistema classificatório das espécies biológicas. Ora, lembremos que diagnóstico não é classificação, pois uma classificação deve ser exaustiva, presume-se que o número de seres vivos seja finito e limitado, ao passo que as formulações diagnósticas devem ser construções auxiliares para definir estratégias e táticas terapêuticas. Ou seja, a classificação das espécies presume um conjunto fechado e consistente, o diagnóstico, ao contrário, demanda uma flutuação de empregos conforme sua utilidade. A solução, da qual hoje colhemos os piores frutos, resultou na hiperinflação de diagnósticos inconsistentes, com alto grau de comorbidade e baixo nível de determinação da prática (que se tornou reversa a partir dos efeitos da medicação). São efeitos deste compromisso operacional, derivado de um conceito de conceito baseado no ajuste entre menção (ou uso) e referência e da ignorância de que transtornos mentais (disorders) não são tipos naturais, caso em que seriam chamados apropriadamente doenças. Mas termos descritivos em psiquiatria não poderiam ser ressignificados dessa maneira. A solução foi equiparar dois conceitos lógicos distintos: operação e observação.
Ainda que se se possa assinalar o caráter incompleto e perspectivo da diagnóstica lacaniana, tomada em seu conjunto heterogêneo de versões, sua última versão incide exatamente como uma alternativa às razões da atual razão diagnóstica hegemônica, nos ajudando a entender as razões internas de sua lógica de auto decomposição. Disso resulta ainda a impossibilidade de que a diagnóstica lacaniana seja absorvida ao funcionamento identitários das modalidades prevalentes de sintoma.
CHRISTIAN DUNKER
Psicanalista, AME da EPFCL-Brasil, Prof. Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP.