O Alienista: um conto atemporal
“O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese.”[1]
No século XIX, marcado pela nascente psiquiatria e internação dos loucos em hospícios onde perderam a voz, a literatura nos trouxe várias obras tecidas em torno do tema da loucura como, por exemplo, A enfermaria n.6, de Tchekhov, e O duplo e Notas do subsolo, de Dostoiévski. Machado de Assis difere desses escritores porque traz à tona a função do hospício e o questionamento da ciência de sua época como portadora do saber sobre a verdade configurados no conto O alienista.[2]
Neste conto, o autor também faz referência aos discursos religioso e político. Além disso, havia o fato que, quando foi publicado, ocorria em terras brasileiras uma expansão de manicômios e de obras que versavam sobre diagnósticos e tratamento da loucura.
Em O alienista, a figura do louco não ganha tanta relevância comparada à forma de traçar a linha entre a razão e a desrazão. O interesse de Bacamarte, médico, recaiu sobre “o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral”. (ASSIS, 2019, p. 28) porque “A saúde da alma, (…), é a ocupação mais digna do médico.” (ASSIS, 2019, p. 30), pois, nada modesto, reconhece que não havia autoridade no assunto quer na Colônia (Brasil) ou em terras lusitanas e, portanto, podia vir a ser coberto de “louros imarcescíveis”. (ASSIS, 2019, p. 29).
Menegoto e Santos (2020) formulam a pergunta: Mas o que seria a saúde da alma?, fazendo relação com o individualismo nascente na modernidade. “No conto O alienista, a paixão pela ciência de Simão Bacamarte foi a expressão do período iluminista, que acreditava nos poderes da razão para conquistar a liberdade e a felicidade” (MENEGOTO; SANTOS, 2020, p. 78).
Em Itaguaí, citando Machado, “cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua.” (ASSIS, 2019, p.30).
Bacamarte, construiu a Casa Verde que recebeu os loucos da vila e redondezas. Após dividir os doentes entre duas classes, loucos mansos e furiosos, passou a criar as subclasses: monomanias, delírios, alucinações diversas. Pretendia, com isso, descobrir a causa de tais fenômenos que escapasse das explicações místicas ou divinas, e, claro, chegar ao “remédio universal” para os adoecimentos da alma, sem descuidar de observar e anotar algo novo que lhe surgisse à frente.
Para Bacamarte, a razão era a pérola do espírito humano que definiu como “o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia”. (ASSIS, 2019, p. 78). Formulou, então, sua primeira hipótese: apenas seriam considerados sãos os que exibiam perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Inclusive, recolheu sua esposa à Casa Verde por mania sumptuária, o que lhe trouxe grande credibilidade.
Machado de Assis não deixa a história parada e faz decair essa hipótese após a internação de quatro quintos da população de Itaguaí. Devido a essa quantidade de internados, trouxe outra que lhe era oposta: o desequilíbrio das faculdades era normal e exemplar e a patologia incidiu em casos de perfeito equilíbrio. A Casa Verde acolheu os que atendiam a nova ideia e foram alojados também por classes: modestos, tolerantes, verídicos, símplices, magnânimos, sagazes, sinceros, etc. E, para eles, foram oferecidos tratamentos que procuravam instigar o desequilíbrio.
Quando, por fim, não havia mais internos na Casa Verde uma vez que estes últimos demonstraram algum desequilíbrio, essa segunda hipótese engendrou dúvidas no alienista: “Mas deveras estariam eles doudos (grifo meu), e foram curados por mim – ou o que parece cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito desiquilíbrio do cérebro?” (ASSIS, 2019, p. 246). Termina por achar que os cérebros perfeitamente equilibrados eram, de fato, tão desiquilibrados como os da hipótese anterior. É Machado alinhavando suas letras para depois puxar o fio e criar outros andamentos no conto.
Essa conclusão, colocou Bacamarte entre a cruz e a espada. O problema é que assim pensando, podia afirmar que não existiam loucos em Itaguaí. Ideia que poderia “destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica”. (ASSIS, 2019, p. 248).
O alienista findou por encontrar em si mesmo o perfeito equilíbrio mental e moral, e conclui que “A questão é científica, (…); trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.”. (ASSIS, 2019, p.251) Entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo e morreu sem alcançar nada.
Nesse conto, Machado trata da impossibilidade da ciência e seu método de investigação de fornecer uma fundamentação suficiente para dar conta dos vários jeitos e transfigurações que o humano encontra para exprimir as dores da alma. As perguntas sobre o normal e o patológico continuam a produzir hipóteses que, muitas vezes, são transmitidas como verdades. Acontece que o mundo gira e as ideias também, e novas hipóteses surgem no cenário do conhecimento.
No conto, da classificação dos chamados loucos vieram os diagnósticos e podemos aproximar ao que acontece nos dias atuais com a profusão dos mesmos. Fenômeno sugestivo para pensar que, num horizonte próximo, cada qual com seu sofrimento encontrará um diagnóstico para chamar de seu e assim justificará e cristalizará seu modo de ser no mundo, ou melhor, o modo como se insere no mundo e se relaciona com seus semelhantes, mantendo, assim, seu sofrimento que pode ser apenas contingente. Assim, de classificação em classificação, na tentativa de obter maior precisão e abarcar todas as nuances dos distúrbios ditos mentais, talvez, nos surja pela frente algo parecido como “demência dos touros” ou algum padecimento por “amor das pedras”, como nos disse Machado no conto. E todos nós poderíamos ter a oportunidade de passar uma temporada em alguma Casa Verde tal como aconteceu com as pessoas em Itaguaí.
MARCIA POLIDO
Psicóloga, psicanalista, membro do Projeto Freudiano e membro da EPFCL-RDB-Aracaju
Referências Bibliográficas
ASSIS, M. O Alienista. 1ª ed., 4ª impr. Rio de Janeiro: Ed. Antofágica, 2019.
MENEGOTTO, L. M. de O, SANTOS, C. B. A razão/desrazão no alienista: um ensaio em literatura e psicanálise, 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/105558271/A_raz%C3%A3o_desraz%C3%A3o_no_alienista_um_ensaio_em_literatura_e_psican%C3%A1lise, acesso em 28 abr. 2024
[1] ASSIS, M. Crônica. 31 de maio de 1896. Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20A%20semana,%201892.htm#C1896, acesso em 02 de abr. 2024.
[2] Publicado primeiro em edições do Jornal A Estação: Jornal Ilustrado para a família, do Rio de Janeiro e, em 1882, fez parte da coletânea Papéis Avulsos.