Prelúdio do Espaço Escola:
Por que o passe?
Esta pergunta pode ser interpretada de diversas maneiras. Por exemplo, por que continuamos a sustentar o dispositivo do passe? Por que a aposta no passe não se esgotou? Por que, apesar de tão poucos passantes serem nomeados, ainda há tantos pedidos de passe?
As poucas nomeações, é algo que se constata desde o nascimento do dispositivo: na EFP, na ECF, na AMP, na EPFCL[1]. Isso tem dado origem a desconfortos individuais, às vezes com algum eco institucional. No entanto, nossa escola tem sido capaz de assimilar esses desencontros e, depois de mais de vinte anos de existência, o passe está mais vital do que nunca. Por exemplo, no atual CIG, 2023-2024 quinze passes foram ouvidos até o momento, com duas nomeações de AE, e já foram organizados carteis para outros sete passes a serem ouvidos em novembro. Como se explica essa vitalidade do dispositivo?
Nossa instituição é uma Escola do passe, de acordo com os Princípios Diretivos[2]. É uma razão simbólica que ajuda a explicar essa vitalidade. Além disso, as apresentações e os eventos relacionados ao passe e aos testemunhos de AE’s e passadores estão na ordem do dia em todos os níveis da Escola. Isso mostra como a ordem imaginária entra na transmissão da importância do passe. Por outro lado, de acordo com todos os testemunhos, cada novo passe, especialmente no caso de passantes nomeados, tem um impacto sobre os passadores e sobre o cartel do passe. Da mesma forma, os testemunhos dos AE’s têm um impacto sobre o público que eles atingem. A hystorização dá uma certa lógica ao percurso da análise do analisante, mas não esconde, ao contrário, destaca os encontros com o real e como eles evoluíram durante o curso da análise. Isso geralmente toca algo do real dos próprios ouvintes. Há sempre algo novo, algo surpreendente, algo comovente, algo que mobiliza os afetos. Isso, da ordem do encontro com o real, acaba explicando não apenas a vitalidade e a validade do passe, mas até mesmo, eu diria, sua não domesticabilidade.
É claro que isso chega a cada um segundo a sua localização institucional. Lembro-me de um pequeno Fórum em que a importância do passe repercutia no nível local. A analista fundadora falava sobre seu fim de análise e seu passe, havia apresentações de AEs, e a importância do passe ficava evidente para todos. Enquanto eu estive nesse Fórum, cinco dos seus membros passaram pelo passe, com três nomeações de AE. Em contraste, lembro-me de uma aula sobre o assunto, muitos anos depois, em outra instituição. Uma palestra a partir do discurso universitário. Nada mais asséptico e impessoal. Isso não emocionava a ninguém. Duvido que algum dos presentes se animasse a demandar o passe; jamais!
As considerações acima fornecem uma explicação para o clima propício às demandas de passes. Permanece, não obstante, a singularidade de cada caso. Ou seja, quais poderiam ser os motivos de um analisante, ou de alguém que foi um analisante, para demandar o passe? O dispositivo foi concebido para tentar elucidar o que acontece na passagem de analisante a analista. No entanto, como o próprio Lacan pergunta no “Prefácio a edição inglesa do Seminário XI”, o que poderia motivar alguém a solicitá-lo[3]?
Tomei conhecimento de vários motivos em minha experiência como membro do CIG 2023-2024[4], onde estive, até agora, em três cartéis que ouviram seis passes, uma nomeação de AE e, antes disso, vários casos de passantes que conheci em profundidade, cinco deles nomeados AE. Os motivos nem sempre são explícitos, mas podem ser deduzidos dos testemunhos. Complementei minhas respostas com quatro textos em Wunsch 10: um artigo de Colette Sepel, intitulado “Por que o passe?”, e três respostas a ele[5].
A resposta à qual dou maior peso é um certo assombro com as mudanças experimentadas pelo analisante no final da análise, incluindo a passagem de analisante a analista, e uma consequente necessidade de transmitir isso a outros, como se fosse um grande peso a ser compartilhado. Mais do que uma decisão do Eu, é algo que vem de dentro e é imposto ao sujeito. Eu coloco ali todas as nomeações das quais tenho conhecimento. Agora, o inverso não é necessariamente certo: algo essencial pode não ter passado no passe.
Mas acontecem outros motivos. Um deles, não tão infrequente, é submeter-se ao passe para obter uma certeza de que está apto a exercer a profissão de analista. Às vezes, há uma busca de apoio no Outro, a fim de se estabelecer e começar a receber pacientes.
Consideração especial merecem alguns casos em que a demanda de passe parece andar de mãos dadas com uma maneira de se separar do analista. Em forte contraste, às vezes se testemunha da maravilha da análise e do amor pelo analista, ambos obviamente idealizados.
Há também casos em que o passe é uma forma de “cumprir” com, ou de entrar na Escola.
Por fim, sem querer esgotar as possibilidades, às vezes se percebe uma aspiração de concluir no passe algo que não foi resolvido na análise.
Diante dessa diversidade de motivos, alguém ficaria tentado a classificá-los em “válidos” e “inválidos”. Não tenho tanta certeza. Ponto interessante a ser debatido na mesa redonda sobre “Por que o passe?” no VIII Colóquio da Rede Diagonal Brasil.
PEDRO PABLO ARÉVALO – Psicanalista em Barcelona, A.M.E. da EPFCL, Membro do Fórum Psicanalítico de Barcelona. Integrante do CIG 2023-2024
[1] C. Soler (2011). “Estilos de passe”, en Wunsch 10, p. 57.
[2] “Princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan”, disponível em https://champlacanien.net/public/docu/4/epPrincipes2022.pdf
[3] “ …o analista só se historisteriza [hystorize] por si mesmo […]. Persiste a questão do que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se historisterizar [hystoriser} de si mesmo. Jacques Lacan (1976). “Prefácio a edição inglesa do Seminário XI”, in Outros escritos , Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003, p. 568.
[4] É, obviamente, minha opinião pessoal, que não compromete a dos meus colegas membros de cartel.
[5] C. Sepel, “Por que o passe?”, M.E. Lisman, “Começar a atender, autorizar-se, pedir o passe”, F. Farías, “Resposta à Colette Sepel” y J-P Drapier, “Resposta à Colette Sepel”, baseados os 4 em experiências nos carteis do passe 2008-2010. Todos em Wunsch 10 (2011), pp. 77-87.