Prelúdio I
Ato psicanalítico e a ética do bem-dizer
Ângela Mucida¹
A ética indicada nesse seminário é uma ética da transgressão, que visa a um ponto além do princípio do prazer e do serviço dos bens. (Lacan, 1959-60)
Freud cria a psicanálise por um ato, ao escutar no sintoma um dizer além de qualquer patologia. Ele observou, por exemplo, que nas paralisias histéricas ou outras manifestações, “ a histeria se comportava como se a anatomia não existisse.”(Freud, 1893, p. 234), destacando outra noção de corpo com o qual a psicanálise iria operar. Corpo afetado pela linguagem, afetado pelo inconsciente e um gozo arredio ao sentido. A psicanálise surgiu por um ato sintomático, naquilo que todo ato comporta de falho.
Lacan radicaliza a importância do ato, ao afirmar que “(…) ele é por sua própria dimensão, um dizer. Um ato diz algo”(Lacan, 1967-68, p.93), anunciando em Televisão seu desejo de extrair de sua prática “a ética do bem-dizer” (Lacan, 1973, p. 539). Ética nomeada ainda como “bem-dizer o desejo”. Como nossa prática responde a essa ética?
Primeiramente ela não é da ordem da compreensão, não se alia à conformidade das regras da moral, não tem um ideal de cura ou, muito menos, um ideal de fazer o bem. O bem em questão não tem relação com as ofertas do mercado e seus “bens tentadores” (Lacan, 1959-60, p. 267), utilitaristas, que tentam apagar o princípio que rege o prazer e a falta inerente onde o desejo opera. “-Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço ao acesso ao desejo- , na medida em que esse desejo, nós o definimos alhures como a metonímia do nosso ser”(Lacan,1959-60, p.386). A ética da psicanálise fundamenta-se no desejo enquanto falta estrutural que implica o desejo do Outro e o gozo do sintoma.
O bem-dizer é uma enunciação singular, contingente, atravessada pelo real; efeito da interpretação enquanto ato. Lacan destaca a interpretação apofântica como aquela que leva em conta o real. Apofântica foi inspirada em Aristóteles; enunciado verbal que pode ser verdadeiro ou falso. Corte pelo equívoco, seja ele um gesto, o silêncio, um chiste, um traço de homofonia, ou outros meios do dizer que levem em conta o vazio inerente ao real. “O ato é, portanto, o único lugar onde o significante tem a aparência, ou mesmo função, de se significar a si mesmo …” (Lacan, 1967-68, p. 184) .
A ética do “bem-dizer o desejo” sustenta-se na operação analítica pelo corte, pelos efeitos de sentido, descontinuidade na cadeia significante, fissura, pontos de suspensão, sulco no saber, com efeitos de fora sentido. Operação lógica que incide sobre a emergência de um dizer que deixa traços de saber sobre a determinação inconsciente e o gozo subjacente.
As cadeias significantes “(…) não são de sentido, mas de gozo-sentido (jouis-sens) (…) conforme o equívoco que faz a lei do significante.” (Lacan,1973, p. 517). Na ética do bem-dizer estão imbricados o real como impossível-efeitos da lalíngua, fora linguagem-, o simbólico com efeitos de sentido e o sentido da consistência imaginária. Ética orientada pela diferença radical entre os seres falantes.
“Na análise o bem-dizer não é nem aquele do analisante, nem aquele do analista, mas o resultado dessa conjugação. Ainda que seja preciso, que o efeito desta conjugação dos dizeres não se evapore, que ele deixe rastro, e é, na verdade, isso que se escreve em uma análise.”(Soler, 2013, p. 21)
O bem-dizer implica o dizer do analista, sustentado pelo desejo de analista. Desejo enquanto analisado, desejo prevenido, desejo de obter em cada análise uma diferença pura e que visa a um des-ser. Desejo que opera pelo ”ato que comanda o fazer” (Lacan, 1967a, p. 271). Ato associado à ética de “não ceder de seu desejo” que visa essencialmente o “bem-dizer”. O desejo de analista só é operativo ao fazer-se X porque ele é um lugar, “(…)de onde se está fora sem pensar nele.”(Lacan,1967a, p. 266).
Ética do bem dizer, bem dizer o desejo, presença do analista, interpretação, dizer que não sugere nada, não afirma nada, mas causa enigma e tem efeito de ato.
Em Televisão, ao mencionar a ética do bem-dizer, Lacan discorre sobre alguns afetos que incidem sobre o corpo: morosidade, mau humor, excitação maníaca, suicídio, tédio, tristeza… Deste afeto, definido como “covardia moral”, ele contrapõe uma virtude, diríamos, disposição para praticar o bem-dizer, o gay sçavoir. ²“(…) saber alegre, o saber livre e impetuoso da lalíngua, essa língua das palavras retorcidas que não têm a ver com o dicionário, onde o inconsciente cria raiz sonora e da qual o poeta chega a colher a fina flor.” (Bousseyroux, 2009, p. 22)
Nesse sentido, Lacan afirma que somos um poema, porque somos seres falantes, mas os efeitos da lalíngua nos ultrapassa. “Esse poema sou eu, que não o escrevi, mas que é escrito pelo meu dizer, me constitui, e eu posso, graças à uma análise, assiná-lo”. (Soler, 2011, p.168). Podemos nos valer do mal-entendido e do vazio inerente aos significantes da lalíngua, suspensão do sentido, para atingir a linguisteria, mas o analista em sua função não é um poeta. Com Barros: “A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias.” Ou, com Lispector, “pescando com palavra o que não é palavra.”
A virtude do gay sçavoir ressoa com a fala de Lacan em “Alocução das psicoses da criança”(Lacan, 1967b), onde ele diz “ser alegre, até mesmo moleque, e que ele se divertia. Sua única tristeza é não ter para quem contar as razões de sua alegria, quando ele está alegre.”(Lacan, p. 363). No final ele deixa uma pergunta aos analistas, que nosso tema pode relançar, “Que alegria nós encontramos naquilo que constitui nosso trabalho?”
(Lacan, p. 369).
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¹ Psicanalista, AME da EPFCL-RDB.
² A ortografia gay sçavoir criada por Lacan, conforme Bousseyroux, da a impressão de incluir o
ça (isso) da pulsão e o gay, ao invés de gai, vem do provençal e do gótico, “livre, animado,
impetuoso”.
Referências bibliográficas
BARROS, M. “Menino do Mato”, em Poesia Completa, São Paulo, Leya, 2013, p. 417-8.
BOUSSEYROUX, M. Le vice du vice. Revue L’en-je lacanien, n. 13, Éthique du gay sçavoir. Paris, Érès,
p. 17-28, 2009/2. https://shs.cairn.info/revue-l-en-je-lacanien-2009-2-page-17?lang=fr
FREUD, S. Freud. A psicoterapia da histeria. In E.S.B. (J. Salomão, trad., Vol. II, pp. 309-367). Rio de
Janeiro: Imago, 1974.
LACAN, J. O Seminário. Livro 7. A ética da psicanálise (1959-60), Rio de Janeiro, Zahar,1988.
————. O ato psicanalítico (1967-1968). Seminário inédito, APPOA, Porto Alegre, 2006. Lição de
17/01/1968 e Lição de 28/02/1968.
————-. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. In. Autres écrits, Éditions du Seuil, Paris, 2001.
—————. “Allocution sur les psychoses de l’enfant” (1967b), In: Autres écrits, E.Seuil, Paris, 2001.
LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 21-22.
————. Télévision (1973) In: Autres écrits, Paris, Seuil, 2001.
————. O Seminário, livro 20, Mais ainda (1971-1972), Rio de Janeiro, Zahar,1985.
SOLER, C. “A oferta, a demanda e … a resposta”, In: Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 26,
p.15-32, junho 2013.
————–. Les affects lacaniens. Paris, Presses Universitaires de France, 2011.