“Desejo de Escola”
Seminário da CEAR 14-09-24
Angela Mucida
“Desejo de Escola”, foi um dos temas trabalhados no Espaço Escola do VII Colóquio da EPFCL-RDB e que suscitou muitas questões. A CEAR decidiu relançá-lo tendo em vista que os debates sustentados nas assembleias internacionais da EPFCL e da IF, especialmente desde 2018, tocam diretamente a questão do que é ser membro da Escola. A relação entre desejo e Escola faz parte da formação do analista em uma Escola pois tocam diretamente a questão do desejo de analista.
Antes de retomar a questão do “desejo de”, acentuo essa conjunção, trago-lhes algumas reflexões do que consegui extrair a posteriori sobre o desejo que me orientou à uma Escola.
Apesar de frequentar algumas instituições psicanalíticas, até mesmo antes de concluir o curso de Psicologia, nunca havia sentido desejo de ser membro de nenhuma, até surgir as reuniões em torno da criação da EBP –Campo Freudiano em 1995. O desejo nesse momento encontrava-se especialmente no dispositivo de cartel. Já estava enlaçada ao discurso universitário (DU) com mestrado em Filosofia e começando a lecionar em universidade. O dispositivo do cartel marcava para mim uma diferença radical com o que usualmente praticamos no ensino universitário.
Entretanto, os seminários que frequentei na EPB-Seção Minas nesse momento, não me pareciam muito diferentes do DU, mesmo que mais sofisticados. Não me traziam a dimensão do corte que esperava encontrar em uma Escola no que tange à formação do analista. Só anos depois pude compreender que ali predominava a estrutura dos colégios clínicos ou formações clínicas muito semelhante ao DU. Um modelo que atraiu e atrai mais pessoas. Espaço onde parece se movimentar com vigor o circuito de transferências aos analistas: supervisão e demandas de análise. Não que isso seja por si negativo, mas diante dos cursos de “formação” e a maestria muitas vezes presente, a Escola acaba ficando subsumida da mesma forma que os carteis.
A grave crise no Campo Freudiano (1998) se deu exatamente no campo onde não há títulos, mestres, professores e nem equivalências encontradas no DU. A crise se deu em torno do dispositivo do passe de onde pode ser extraído os efeitos da experiência singular de uma análise! Nessa época, o poder que se produzia nas seções clínicas e em cada escola do campo freudiano, envolveu também o dispositivo do passe. A criação da EPFCL (2001) foi, no meu entender, uma tentativa de resgatar o cerne de uma Escola Lacaniana e o dispositivo do passe.
O movimento dos fóruns (1998), surge como um novo significante que, como todo significante provoca efeitos. Foi um movimento que, desde o começo, tinha como direção a criação da escola. A frase “A IF terá sua Escola”, fez parte de inúmeros debates da época marcando pontos de junção e disjunção entre fórum e Escola, criada somente três anos depois. A criação da Escola em 2001 promoveu um corte que se mantém até hoje entre o campo dos fóruns, no plural, com a Escola, no singular, internacional e pluri-lingúística.
Cria-se com ela o campo lacaniano, tal como desejou Lacan. Lembramos que no Seminário 17 Lacan refere-se à Subversão Analítica, o discurso analítico, discurso sem palavras, onde ele introduz o objeto a no lugar de semblante. Ele denomina essa subversão de campo lacaniano, especialmente ao introduzir outra noção de linguagem. Trata-se de um campo marcado pelo que ele articulou com o matema: S(Ⱥ). Campo onde temos os uns contáveis e o gozo que não pode ser enumerado, contado. Nesse campo não há uma proporcionalidade lógica, pois resta algo impossível de ser preenchido, marcado pelo real. A criação da EPFCL foi a tentativa de resgatar os efeitos do campo lacaniano para a prática analítica.
Os dois textos que regem a IF- EPFCL, a Carta da IF e os Princípios de Escola, dialogam entre si da mesma forma que Fóruns e Escola. Só podem dialogar porque mantêm suas diferenças fundamentais e estruturas diferenciadas com responsabilidades também diferenciadas entre seus membros. O nome dado a essa Escola, advindo de um amplo debate, segue a ideia de que a IF tem sua Escola. Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano que, uma vez criada, passa a ser a orientação do Campo Lacaniano. Assim, o campo da formação estrita do analista é garantia da Escola.
Como nos lembra Vicky Estevez no Espaço Escola do VII Colóquio da EPFCL-RDB (2023) em Belo Horizonte, a Escola não nasceu dos fóruns. Ou seja, a Escola introduz um corte e diferenças fundamentais.
A partir daí os fóruns seguem a via que foi a criação da Escola. Há um movimento essencialmente analítico de junção e disjunção entre Fóruns e Escola, e que não para, de onde se retira as consequências da criação da Escola. Há um tempo de compreender a estrutura do campo lacaniano por meio dos programas, seminários, carteis inscritos na Escola, participação em Encontros, etc, para que um conjunto de pessoas, pelo menos 10, criem um Fórum. Outro tempo lógico, em geral muito mais longo e rigoroso, para que um Fórum passe a ser Escola ou seja, para que ele passe a usar o nome EPFCL-X. O mínimo de 30 membros de Escola implica, além do número, outro tipo de responsabilidade subjetiva e coletiva com essa escolha.
A pluralidade dos fóruns alia-se especialmente ao campo da extensão, à crítica assídua à Escola; função importante dos fóruns. O singular da Escola, apoiado por um desejo inédito, faz laço com a intensão, formação do analista, com seu Espaço Escola, sustentando por membros de Escola, onde articulam-se diferentes temas específicos à formação do analista, incluindo os cartéis. As formações clínicas ou colégios clínicos passam a ser mencionadas na Carta como instância opcional, já que os fóruns têm funções semelhantes, mesmo que distintas.
Valendo-me da lógica do universal poderia dizer que o conjunto de membros Fóruns (plural) e Escola ( singular) são membros da IF. Do universal extraem-se regras e exceções: nem todo membro da IF é membro de Escola. Outra exceção marca o percurso de formação dentre os membros de Escola, são os denominados Analista Membro de Escola (AME) com funções diferenciadas, dentre elas a indicação de passadores para o dispositivo do passe. Essa é a orientação que seguimos desde 2001. Mas, ha uma nomeação advinda do passe que não encontra equivalências, não pode ser predicada pelo universal, são os analistas de Escola (A.E). Tratam-se de testemunhos advindos de uma análise que não encontram equivalências e não se apoiam em titulação alguma. Essa diferença absoluta liga-se diretamente à questão do desejo de analista, bem como ao conceito de sinthoma em Lacan.
Conforme Vicky Estevez (2023): “ser membro de Escola é, pois, sustentar e questionar, em primeiro lugar, sua própria prática, colocar à prova os efeitos de seu ato (que, por definição, é solitário) pensando-os com otros.”
Isto me remeteu a uma indicação de Freud em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”(1912) onde, ao acentuar a importância da experiência de uma análise na formação do analista ele destaca que na análise o analisante “(…) adquire na própria carne, por assim dizer, impressões e convicções que procura em vão nos livros e nas conferências”.
Desejo de Escola
Retomo um ponto do trabalho que apresentei no ultimo colóquio onde reflito sobre tradução para o português “desejo do analista” e não desejo de analista , com suas consequências, para avançar um pouco sobre desejo de Escola.
A questão mais problemática dessa tradução, “desejo do analista”, é porque em português ela nos leva a supor que o desejo em questão refere-se à subjetividade do analista e não de um desejo específico, advindo de uma análise, de sustentar a função de analista. Alguns sujeitos chegam ao fim de uma análise sem serem tocados por esse desejo.
Na “Proposição de 9 de outubro de 1967” lança algumas afirmações sobre o desejo de analista. Ele não implica o desejo de ser analista ou que, na direção do tratamento, o analista deseje isso ou aquilo. “O analista, na psicanálise, ou, mais exatamente, no ato que comanda o fazer, não sendo um sujeito.” (Lacan, 1967, p. 271). A segunda afirmação, encontrada anos antes no Seminário 7, alia-se à primeira: “O que ele tem nada mais é do que seu desejo, como analisado, com a diferença de que é um desejo prevenido” (Lacan, p.360), que ressoa com a frase de anos depois: “o analista só se autoriza de si mesmo”. Isso é importante; de si mesmo e não por si mesmo. Ou seja, não está em causa o sujeito, mas o analisante em um dispositivo de Escola. Fazer-se autorizar. Não é um título que se obtém a partir da indicação de um Outro.
No Seminário 11 Lacan afirma que “O desejo de analista não é um desejo puro, mas um desejo de obter, na direção do tratamento, uma diferença pura, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.” (Lacan, 1964, p. 260). Trata-se, pois de um desejo que permanece como X, contrário à identificação, uma separação que ocorre na própria experiência. Um X que se alia ao “de-ser” da destituição subjetiva. Desejo que opera pela separação.
Observamos que Lacan busca des-subjetivar cada vez mais a noção de desejo de analista ao afirmar em O sinthoma que o analista é também um sinthoma.
Essa noção de desejo encontra-se no cerne da questão do desejo de Escola. Podemos nos perguntar porque alguns desejam ser membros de Escola e outros não, mas não encontraremos uma resposta que faça desse desejo um conjunto fechado. De outra forma, o que pode provocar ou não a emergência desse desejo singular? Poderia ser o que essa Escola possa transmitir de furo, de descompasso entre saber e verdade? O que temos transmitido na EPFCL-RDB que possa provocar esse descompasso?
Sabemos que existem várias maneiras de obturar o furo promovido pela transmissão em uma Escola. Uma das formas, talvez mais eficaz, é quando o institucional toma corpo excessivo. A Escola sempre leva a pior.
De onde a importância do movimento de crítica assídua e seus cortes. Há efeitos da crítica assídua sobre a Escola. Por exemplo, tivemos um momento na EPFCL em que se decidiu não receber por um certo período novas indicações a AME, abrindo-se um amplo debate sobre o tema. Na última AGO da Escola (Paris, 2024) tivemos o debate sobre o funcionamento do Espaço Escola em cada local onde existe Escola. A revista Ecos 7 do CIG retoma, após o encontro de Escola, a questão das designações de passadores e convida os AMEs a discutirem o tema. Isso faz Escola.
Isso difere-se de práticas que tentam obturar o furo da Escola. Espécie de estrutura que ganha em número; vide formações clínicas com números estrondosos de alunos ou fóruns sem orientação de Escola. A crítica assídua coloca em destaque a Escola não-toda onde se aloja o desejo de Escola.
O que estamos fazendo na EPFCL-RDB ? O que repetimos, pois, sabemos, a tendência é a repetição. Como se apresenta entre nós o “cola” e “descola” advindos da prática de carteis?
Acho que estamos e sempre estaremos no momento de retomar a orientação da escola de Lacan.
Lembro-lhes que inicialmente a RDB era composta de membros isolados e fóruns. Em 2018 propostas de mudanças nos princípios nos leva a escolher uma organização por um Fórum único, inicialmente nomeado de FLC-RDB. Foi uma saída para continuarmos a trabalhar juntos e para que os fóruns ligados à Rede, com menos de 10 membros, não desaparecessem. Acho importante resgatar essa história porque ele não cessa de ser reescrita em cada movimento nosso. Posteriormente nos tornamos Escola. Passamos a adotar o que nos indicam os 2 textos : EPFCL-RDB. Quais são os efeitos de Escola sobre nossos laços? Como ela propicia avanços em nossa prática?
Ramon Miralpeix, no texto apresentado no VII Colóquio da EPFCL-RDB vale-se da denominação: “clínica do desejo de Escola”. Não estaria nessa vertente a possibilidade dos enodamentos entre as cidades que compõem a EPFCL-RDB? Cito-o: “estrutura da escola pela singularidade dos falantes, “díspares desemparelhados que dão vida”. O universal que contém o singular. A Escola no lugar da causa, aquilo que nos causa. Uma forma de tratarmos os efeitos do institucional que sempre buscam obturar o furo da Escola?
Termino com Soler, citada por Ramon: “Sabemos que temos muitos ensinos que de fato não são ensinos; são trabalhos de estudo, de desenvolvimento, mas não produzem saberes inéditos. Um ensino produz um certo saber, uma parte de saber, um pouco de saber e por isso há uma série de outros sujeitos que podem agrupar em escola pelo fato de referir-se a esse ensino. Uma serie não faz um conjunto, É uma serie de mais um, mais um, mais um.”
Referências Bibliográficas
Estevez, Vicky. “Desejo de Escola?” Texto apresentado no Espaço Escola do VII Colóquio da EPFCL-RDB, Belo Horizonte, 2023.
FREUD, S. “Recomendações aos médicos que exercem que exercem a psicanálise”( 1912). In: E.S.B das obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1969, Vol XII.
LACAN, J. O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise ( 1959-1960). Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
———. Proposição de 9 de outubro de 1967. In. Autres écrits (pp. 243-259). Paris: Éditions du Seuil, 2001.
———-. O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise ( 1969-1970). Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
———–. O seminário. Livro 23. O Sinthoma( 1975-1976). Rio de Janeiro, Zahar, 2007.
Mirapeix, R. “A clínica do desejo. Desejo de Escola.” Texto apresentado no Espaço Escola do VII Colóquio da EPFCL-RDB, Belo Horizonte, 2023.