Prelúdio VIII
Não sem o corpo!
Sidi ASKOFARÉ*
Ao questionar a psicanálise e sua experiência do ponto de vista oferecido pelo século que nos separa de seu advento, o que aparece é ao mesmo tempo surpreendente, novo e subversivo. O movimento característico da descoberta freudiana, que ia do somático ao psíquico pela via da pulsão e seus destinos, parecia uma emancipação definitiva das cadeias do corpo.
O “retorno a Freud” promovido pelo próprio Lacan não teria tido, em si mesmo, a consequência de privilegiar a ideia da psicanálise como reduzida a uma prática da fala no campo da linguagem? O que – é claro! –, não está errado e até foi decisivo para trazer a experiência de volta aos seus fundamentos. O lamentável é que essa orientação teve como consequência, em detrimento de Lacan, que o corpo não era importante para a psicanálise. O que fará objeção a toda sequência que ele dará ao seu ensino.
Desde então, a objeção dessa redução da psicanálise a uma prática do significante nos obriga a recomeçar do zero sobre o que está envolvido com o corpo, seu lugar e suas funções na psicanálise. Quer isto seja no plano imediatamente clínico, como o sintoma que é o alfa e o ômega de nossa experiência, é um “acontecimento de corpo”. E, além de nossa clínica dos corpos afetados, esta dos corpos infectados que nossa epidemia contemporânea de Covid-19 exibe. Quer isto seja no nível da teoria, o que nos obriga a avaliar as incidências da borromeanidade e da promoção do falasser. Quer isto seja no nível social que nos lembra que os discursos, e antes de mais nada o discurso analítico, são antes de tudo os elos sociais entre corpos falantes e gozantes. Corpos que são igualmente corpos de classes, corpos de “raça” e, sobretudo, corpos sexuados. Quer isto seja no plano político – e sem necessidade de imprimir um caráter foucaultiano ao extremo à nossa perspectiva – que nos ensina que a política é fundamentalmente governo dos corpos, do indivíduo à população – antes de ser dos territórios que esses corpos habitam. Com isso que o território implica de convivência com outros corpos, outras espécies vivas, portanto de ecologia e preocupação com o meio ambiente.
Desde então, eu diria que se, em 1973, Lacan nos convidava, em seu Seminário Mais, ainda, “a levar o corpo a sério”, é porque ele não era um místico e muito menos um teólogo. Ele não acrescentava aos mistérios do cristianismo – e especialmente ao mistério da Encarnação tão bem exposto por Ludwig Feuerbach no Capítulo I de A Essência do Cristianismo – um novo mistério, o do “corpo falante”. Ele estava, ao que me parece, apenas abordando, em uma formulação ainda aproximativa, sua orientação resoluta para o inconsciente real e o que tem ao mesmo tempo de impossível, de nodal e de inatingível pela estrutura do inconsciente-estrutura na experiência da psicanálise. O certo é que Lacan estava, desta maneira, abrindo um caminho para “ir mais longe” do que o inconsciente-linguagem. E esse caminho, se ele passa por satisfação e por afetos mais enigmáticos, necessariamente convoca o corpo.
*AME de l’EPFCL (França), Professor da Universidade de Toulouse -Jean Jaurès







