Corpo e luto nos tempos da pandemia da Covid_19
Clarice Gatto[1]
À T. S. por sua desaparição de nosso convívio.
Foi por meio da decodificação e da decifração dos sintomas histéricos, pelo caráter traumático – troumatique como alude Lacan – da sexualidade, que Freud foi levado a representar o inconsciente. Sem dúvida, o que é da ordem do inconsciente não é da ordem do corpo, no entanto parece que o inconsciente não é sem relação com o corpo. É o que o demonstra também o ensino de Lacan: a psicanálise “não é sem” o corpo, “não é sem” essa fonte (libidinal), como preconizava Freud[2], sem seu suporte material, ainda que em sua prática discursiva – porque seu exercício se dá por meio do sujeito que fala – foram necessários outros conceitos no recurso à escrita lógica da fantasia ou do delírio, e consequentemente à destituição subjetiva[3] numa psicanálise.
“O corpo não é um conceito do mesmo modo, por exemplo, que o inconsciente, a pulsão, a transferência, a resistência, o significante… mas ele foi puxado para o lado analítico enquanto suporte do significante e como fazendo parte da tríade R.S.I. Lacan saiu da problemática corpo-alma instaurando o corpo na linguagem… o corpo é capturado também na tríade corpo-linguagem-desejo. O corpo é sem alma, é corpo de gozo e, portanto, desejo; o que acarreta muitas consequências na concepção da vida humana.”[4],[5]
“Que corpo se trata na psicanálise?” nesses tempos da pandemia da Covid_19, quando a morte de entes queridos chegou na casa de muitos de nós e de centenas de pacientes nas enfermarias, fazendo da narrativa em análise uma tela de Hieronymus Bosch, o inquérito epidemiológico Sobre a maneira da transmissão do cólera de John Snow, um romance de Gabriel Garcia Marques em que o cinema, essa arte da imagem, traz de volta esse amor nos tempos do cólera.
“Quem não é capaz de evocar Antígona em todo conflito que nos dilacera em nossa relação com a lei que se apresenta em nome da comunidade como uma lei justa?”[6]
Preciosa essa fala de Lacan. Sobretudo, hoje, quando o Brasil chega a quase 400 mil mortos pela Covid_19. O risco iminente de morrermos, o medo do morrer e da morte “de toda a população do planeta” num curto espaço de tempo por contágio de uma doença infecciosa altamente virulenta configurou a pandemia decretada pela OMS em 11 de março em 2020. O risco é real para todos, mas torna-se desigual em função do grau de exposição, por exemplo, de trabalhadores (homens, mulheres e mulheres grávidas) que se deslocam sobretudo via transporte público diariamente enquanto outra parcela da população permanece em teletrabalho on-line e de casa.
As #FiqueEmCasa e sua variante #FiqueEmCasaSePuder assinalam para essas desigualdades presentes nas relações sociais de trabalho formal e ou informal no modo de produção capitalista.[7] No Brasil, a distribuição de renda recrudesceu, a população empobreceu e milhares passaram a sofrer de fome. Marx no capítulo “Jornada de trabalho” chama a atenção para a operação que transforma o corpo dos trabalhadores em mercadoria intercambiável e monetizada via a noção força de trabalho. “O capital transgride não apenas os limites morais da jornada de trabalho – já que todo o tempo disponível é por natureza e por direito tempo de trabalho… mesmo o tempo livre do domingo… –, mas também seus limites puramente físicos.”[8]
Quando Lacan volta a dizer, não é simples, ainda que “… era preciso falar de corpo, que há um corpo do imaginário [de seu esquema mental[9], fantasístico], um corpo do simbólico – é alíngua – e um corpo do real do qual não se sabe como ele sai. Isto não é simples, não que a complicação venha de mim – ela está aí mesmo.” É a Freud que ele recorre para dizer ter sido confrontado com a ideia que suporta o inconsciente… e sua tópica, como formulou, desde “A instancia da letra ou a razão do inconsciente desde Freud”, foi demonstrada na ‘varité’[10] de seu ensino entre “significante barra significado”…
Malgrado as dificuldades diante das restrições sanitárias para regular os enterros na prevenção do contágio, as famílias das milhares de pessoas mortas – ou “o amor de alguém”, como canta o poeta Chico Cesar – continuam cumprindo o doloroso desígnio de enterrá-las. O luto, no entanto, é diverso do cumprimento dos rituais fúnebres, pode ser uma consequência, ou não…
O luto é um afeto do sujeito do inconsciente, deixa corporalmente à mostra a dor lancinante da perda, “é um buraco no real que mobiliza o significante”[11] (Lacan), que exige trabalho psíquico[12] (Freud), o dever de bem-dizer (Lacan), ou o de se referenciar no inconsciente, na estrutura.[13] Entre o sujeito e o Outro (outro), a psicanálise nos ensina, a resposta se dá pela (lógica) da fantasia (ou do delírio), em cujo investimento libidinal – em algo ou alguém – se representa.
A interpretação de Lacan sobre o luto a partir da tragédia moderna de Hamlet de Shakespeare é memorável e traz distinções muito interessantes para com Freud. Espero compartilhá-las com vocês em nosso V Colóquio.
Até breve!
Clarice Gatto
Rio de Janeiro, 26/4/2021.
Instagram: @clarice_gatto
[1] Psicóloga. Psicanalista no Rio de Janeiro. Pesquisadora titular na Fiocruz. Doutorado em Psicologia Clínica / PUC-Rio. Membro da EPFCL. Membro da FLCRDB. FCL diagonal Rio de Janeiro.
[2] Freud, Sigmund. Especialmente As pulsões e seus destinos, de 1915, e Além do princípio de prazer, de 1920. Obras completes, qualquer edição.
[3] Lacan, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Outros escritos. RJ: JZE, 2003.
[4] Roberti, Louis de la. Le corps. Textes de Jacques Lacan. Littoral. Paris n.27/28, avril 1989.
[5] Cf. Lacan, Jacques. O Seminário 24: “L’insu-que-sait de l’une-bévue s’aile a mourre” [Tradução de Jairo Gerbase] aula de 16 de novembro de 1977, inédito.
[6] Lacan, Jacques. O Seminário – livro 7: a ética da psicanálise, RJ: JZE, 1982, p.
[7] Souza, Enéas Costa. O discurso capitalista. In: O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo. Jerusalinsky, Alfredo e outros (Org.). POA: Artes e ofícios, 2000.
[8] Marx, Karl. “A jornada de trabalho”, O Capital. São Paulo: Boi Tempo, Vol. I, p.337.
[9] Lacan, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Escritos, RJ: JZE, 1998, p.818.
[10] Varité é um trocadilho de Lacan que reúne verdade (vérité) e variedade (variété), aula de 19 de abril de 1977 d’O Seminário 24: L’insu-que-sait de l’une-bévue s’aile a mourre, op. cit.
[11] Lacan, Jacques, aula de 22 de abril de 1959 [Seminário 6]. In:_____. Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvin, 1989.
[12] Freud, Sigmund. Luto e melancolia (1915). Obras completas. Qualquer edição.
[13] Lacan, Jacques. Televisão, Outros Escritos, JZE, 2003, p.524.







