V Colóquio FCLRDB
Prelúdio VI
Carla Novaes
Um corpo, isso se goza. Isso se escuta?
O corpo para a psicanálise é uma questão freudiana bem preliminar desde o estudo exaustivo de histéricas graves como Ana O que apresentava sintomas corpóreos de partida incompreensíveis e de todo tipo, como parafasias, estrabismos, paralisias, paresias, tosses, contraturas nos membros dentre outros1. Sintomas esses existentes num campo corporal de aparência enigmática, sem correspondência com a semiologia das clínicas médica e neurológica. Ana O ensinou muito a Freud (e a Breuer!) sobre a transferência e assim como da necessidade de um tempo de escuta para se construir um enredo do sintoma. Um sintoma enredado no corpo. Que corpo se trata na psicanálise?
Dos mistérios ou estranhezas sintomáticas da histeria, o estudo das encenações corporais abriu caminho para a noção de uma representação psíquica do corpo. Um corpo da descoberta freudiana que na tenra infância era investido de libido e de questões relativas ao sexual. O corpo sexuado para Freud em construção inicial, corpo da diferença sexual, do mito edípico. De Freud a Lacan, corpo imaginário, simbólico ou corpo em que teria algo em que nele não cessa de não se inscrever? Um corpo um tanto destoante da noção médica de corpo como conjunto de sistemas, órgãos, células, organelas. Não que esse corpo não exista. Mas, que corpo se trata na psicanálise?
Lacan em seu Seminário Mais, ainda (Encore, en corps) ao se referir ao sujeito da psicanálise nos diz: “O sujeito não é aquele que pensa. O sujeito é, propriamente, aquele que engajamos, não, como dizemos a ele para encantá-lo, a dizer tudo – não se pode dizer tudo -, mas a dizer besteiras, isso é tudo”2. O sujeito do inconsciente aparece na dimensão significante, na medida em que o significante representa o sujeito para outro significante. E para Lacan, “o significante é a causa do gozo”3. Gerbase nos diz que “o novo protocolo de Lacan consiste em juntar o corpo e o Outro”, resgatando em Radiofonia que “o simbólico toma corpo” e que não se trata de uma metáfora, pois “o Outro não deve mais ser considerado apenas o tesouro do significante; é o corpo que assume, doravante, esse lugar”4. Mas, que corpo se trata na psicanálise?
A psicanálise fundamentando-se na dimensão simbólica através do discurso analítico põe o acento na função do significante. Diferencia-se da filosofia do sujeito cartesiano que se sustenta nas “substância pensante” e “substância extensa”. Prosseguindo com Lacan: “para situar, antes de deixá-los, meu significante, proponho-lhes sopesar o que, da última vez, se inscreveu com minha primeira frase, o gozar de um corpo, de um corpo que, Outro, o simboliza, e que comporta talvez algo de natureza a fazer por em função uma outra forma de substância, a substância gozante. Não é lá que se supõe propriamente a experiencia psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriamente do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza”5
Retomando o percurso princeps da histeria, Ana O, Dora e tantos pacientes, histéricos ou não, gozaram ou gozam com seu sintoma. Gerbase ressalta que “o corpo não é mais uma imagem, porém, seja vivo ou morto, é o índice do simbólico”. E alude que “existem, portanto, dois corpos: o corpo do significante e o corpo vivo, e que cada um deles não existe sem o outro”. Estamos no século XXI e testemunhamos não apenas promessas, mas certezas psicofarmacológicas ditas científicas para tratar sofrimentos diversos, muito mais medicalização que medicação. Mais ainda, os pacientes eles mesmos buscam essas substâncias. Para continuarem a gozar? Hoje “Anas O” ou “Doras” certamente são “bem medicadas” com respaldo na medicina baseada em evidências. O que se observa nesses casos é que não existe nem o psicofármaco nem psicofármaco para tratar esses sintomas dissociativos, conversivos, somatoformes. Isso se goza, isso se apazigua com farmácia?
Lacan nos lembra que “a análise encontra sua difusão em função de questionar a ciência como tal – ciência na medida em que faz de um objeto um sujeito, enquanto é o sujeito que é, em si, dividido”.7 E é este sujeito dividido que equaciona a dimensão do real. A ciência tende a escamotear o real, ou querer domá-lo. Sabemos que Ana O, ao falar em diversas línguas com Freud lhe chamara atenção, certa vez, que o que ela fazia ali se tratava de uma “talking cure” e que também, por meio deste tratamento, limpava a chaminé. Mesmo não querendo saber de nada do que dizia, disse besteiras fundamentais para a psicanálise. Que um corpo, isso se goza, isso se escuta, se limpa uma chaminé pelo mais de gozar. Numa atualidade marcada pela positividade e pelo excesso de objetos de consumo, de multiplicação das possibilidades de gozo, que sintomas novos observamos e disso que podemos falar? Desafios para este colóquio trabalhar as questões relativas ao corpo, extenso demais para caber num signo.
Referências bibliográficas:
- Freud, S. Estudos sobre a Histeria (1893-1895). II- Casos Clínicos. Obras Completas, Vol II. Rio de Janeiro. Imago.
- Lacan, Jacques. Seminário, livro 2: mais, ainda (1972-1973). 3.ed – Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.28.
- Ibid, p.30.
- Gerbase, J. O homem tem um corpo. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2020. p.29.
- Lacan, Jacques. Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973)- 3.ed – Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.29
- Gerbase, J. O homem tem um corpo. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2020. 31.
- Lacan, Jacques. O sinthoma (1975-1976). – Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2007. p.36
Carla Novaes – psiquiatra/psicanalista, membro da EPFCL e do FCL Rede Diagonal Brasil-Recife.







