V Colóquio FCLRDB
Prelúdio V
Marcia de Assis
Psicanalista, membro da EPFCL e membro do FCL Rede Diagonal Brasil-Niterói
O corpo falante
“O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (Lacan, 1973/1985).
“A questão é essencial, pois o corpo que interessa ao psicanalista em sua clínica é, justamente, o corpo afetado pela linguagem” (Elisabete Thamer, 2019).
Que corpo se trata na psicanálise?, questão essencial, formulada de maneira a permitir o equívoco, pois evoca o termo corpo em sua elaboração teórico-conceitual – (de) que corpo se trata? -, ao mesmo tempo que convoca a clínica psicanalítica.
As epígrafes escolhidas, apontam-nos a via pela qual seguiremos, levando em conta o significante como ponto de partida, considerando a operação de linguagem sobre o organismo (vivente) que faz dele um corpo, produto transformado pelo discurso, efeito de linguagem, um corpo falante.
A psicanálise se ocupa em desfazer pela fala o que é feito pela fala. Tal afirmação corrobora que o corpo que se trata na psicanálise é o corpo sensível ao significante e resume a aposta implícita no convite que se faz àqueles que buscam uma análise: fale, associe livremente! Há uma aposta no efeito terapêutico da fala, porém tem de ser levado em conta que “a função terapêutica da fala consiste em perguntar: quem fala?” (Gerbase, 2015, p. 13). Tal pergunta revela a divisão subjetiva. Isso fala, o Inconsciente. O sujeito se sente ultrapassado, surpreendido, pois o Isso fala sem saber, numa interjeição, numa invocação, é sempre ele que nos põe o seu enigma. Freud ficou siderado pelos fenômenos – sonhos, atos falhos, chistes – especificamente pelo modo de tropeço pelo qual eles surgem e, é aí nesse tropeço, que procura o ICS (Lacan, 1964/1985). Portanto, a regra analítica supõe que a resposta esteja lá, no Inconsciente, convidando-o a falar. Assim sendo, o analista “não fala”, pois não está no dispositivo analítico como sujeito, ele vai dar a palavra ao Outro, o Inconsciente, ao se prestar a posicioná-lo.
A interpretação é a tática do analista, furando o sentido, abalando as significações cristalizadas, acentuando o não sentido, fazendo ouvir o duplo sentido. Dito de outro modo, a intervenção do analista tem por instrumento o equívoco significante, portanto, é tagarelando sob atenção flutuante que se pode operar um efeito sobre o sintoma (acontecimento de corpo), pois o corpo de que se trata é um corpo sensível ao significante. Essa é a nossa aposta, aposta que o sintoma se faz a partir dos equívocos significantes, sendo uma interpretação de cada um diante do que ouviu. O sujeito reage às expressões ouvidas, antes mesmo que apreenda o sentido dos sons, antes de produzir suas próprias frases, ele é afetado, causando efeitos no corpo. Segundo Gerbase em Atos de fala (Op. cit.), quando se ingere uma molécula química, ela produz efeitos no corpo. O significante também, embora ele não entre no corpo, mas ressoa… assim sendo, onde um neurologista procura uma lesão, o psicanalista busca um significante.
O sujeito tem um corpo e só um. Tem um corpo não quer dizer ele é um corpo… “ele teinhum… e não: ele éum… corp/aninhado” (Lacan, 2003, p. 561). Se enveredássemos por esta vertente – ele é um corpo – estaríamos reduzindo-o ao organismo vivo e promovendo o apagamento do sujeito dividido, do corpo falante, até mesmo da psicanálise, posto que seria um corpo reduzido à máquina neuronal, que faz sinapses e secreta hormônios, enzimas, sem considerar o encontro do organismo vivente com a linguagem. “Ser reduzido ao corpo, ser o corpo, ao invés de ter um corpo, é tornar-se corpo signo, corpo real sem o laço com a corpsificação do simbólico, o impossível do real e a consistência do imaginário” (Mucida, 2020).
O sujeito não é carne, é falta de carne, marcado pela perda. Ele não é seu corpo, mas “ele não é sem corpo, ele o tem” (Soler, 2001-02/2019, p. 24) e fala com seu corpo, ou seja, “o corpo pulsional não é um corpo animal (…) o falante é um mutante na escala animal” (Soler, Op. cit. p. 17). Trata-se, portanto, de um corpo transformado, desnaturado, corpo falante, sintomático e pulsional, acolhendo o termo pulsão como efeito de linguagem.
Retomando a frase “o sujeito tem um corpo e um só”, visando realçar o final da frase, e um só. Tendo a ler da seguinte forma: o ser falante não tem o corpo do outro, mesmo que queira prendê-lo num abraço apertado. Entre o homem (falante) e o mundo, há o muro… o muro da linguagem, l’amur, (a)muro. Ou, ainda, “no milímetro que nos separa cabem todos os abismos” (Andrade, 2002).
Se você, leitor, está se perguntando – Como é isso? -, direi que os prelúdios servem à função “abre-alas”, dando passagem ao seu desejo e questões.
Referências:
ANDRADE, C.D. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2002.
GERBASE, J. Atos de fala. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2015.
MUCIDA, A. III Prelúdio do V Colóquio FCL Rede Diagonal Brasil, 2020.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais. Versão brasileira M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 269p.
______. (1972-73) O seminário, livro 20: mais, ainda. Versão brasileira M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 201p.
_______. Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
SOLER, C. O em-corpo do sujeito: seminário 2001-2002. Tradução: Graça Pamplona, Sonia Magalhães. Salvador: Álgama, 2019.







