V Colóquio FCLRDB
Prelúdio IV
Luís Andrade
Quando a voz toma (o)corpo
A tradição psicanalítica privilegiou, durante um bom tempo, as virtudes gozosas dos objetos da demanda, seja pela sua ancoragem nas funções corporais, seja por terem sido as primeiras a serem destacadas em função de sua inscrição nos diferentes estágios do desenvolvimento libidinal. A leitura estrutural feita por Lacan permitiu, a um só tempo, desatrelar essas modalidades pulsionais de uma perspectiva desenvolvimentista e elevar olhar e voz ao estatuto de objeto, inserindo estas na dinâmica das relações do sujeito com seus objetos de desejo e salvando aquelas das amarras da necessidade. A pulsão passa, então, a ser definida essencialmente como busca de gozo, rodando em círculo em torno de um vazio, cuja constância logica se encarna numa parte do corpo que cai, sob forma de dejeto.
Mas, se a pulsão persegue o gozo, é o caso de se perguntar, “como” isso se alcança e em usufruto de quem? A pulsão responde pelo gozo, mas a dimensão do gozo é só do corpo (Sem. 13:358; 362), que se ressarce de sua perda graças ao recurso ao Outro, com a ajuda do órgão-libido, que para isso está (Écrits, 1966:849).
Quando se trata dos objetos da demanda, presentes no registro da fala, que são representados por significantes no inconsciente e até se servem de equivalentes simbólicos (cfr. O homem dos ratos), o alcance perceptível é mais próximo e mais tangível. Mesmo a pulsão escópica, cuja dimensão de objeto é inapreensível, pode alcançar sua quota de gozo, apesar da distância, graças ao caráter libidinal que lhe confere sua função háptica.
Ora, o objeto “voz” não dispõe de tais recursos. Sendo, entre todos, o mais original, o mais próximo do inconsciente (Sem.10:279), o de mais difícil apreensão e o mais importante, do qual não se pode escapar (Sem.23:19), seu estatuto metapsicológico parece ser diferente de todos os outros, já que ele é, ao mesmo tempo, necessário para o advento do sujeito, como real primordial, e aterrorizante no seu poder de captura. Tal singularidade levou Lacan a reconhecer a indefinição do seu status nas categorias mentais do clínico (Sem. 13:339), depois de tê-lo reconhecido, originariamente, nos fenômenos do automatismo mental e no parasitismo das injunções supereuóicas (Sem.1:119; Sem. 10:275;301; Sem. 20:10), para, em seguida, identificar nas escansões do chofar e no monólogo hipnopômico suas formas exemplares (Sem.10:274s;298).
A voz é esse resto separado da fala (Sem. 10:298), esquecido por trás do que se diz, diferente do dizer (Sem.21:80). É o que subjaz ao significante, embora lhe seja solidário, pois a linguagem requer o suporte da voz (Sem. 13:338) para não ser letra morta, tal como a voz necessita da lei da fala para manter seu aspecto pacificante para além de sua dimensão transgressora (Vivès, 2012:31). A voz é o furo real no universo descontínuo do simbólico. É aquilo que se cala quando falamos, pois a palavra esconde a voz, que é a-fônica, distinta das sonoridades e sem sentido. Em suma, a voz é tudo o que, do significante, não concorre para o efeito de significação. (Miller, 2013:6).
Falar de “tomada do corpo” pela voz, para além de sua aparente conotação hiperbólica, é reconhecer que é no corpo, seu suporte, que o gozo pulsional opera. Até porque se a pulsão é o eco de um dizer, é no corpo que ele ressoa (Sem.23:18). É também outra maneira de enunciar que a voz se incorpora e se reflete como ecos do vazio do Outro no real (Sem.10:320;300). Mas, em primeiro lugar, é reconhecer que a voz primordial precisa tomar corpo para que o sujeito do desejo advenha. Depois, ao sabor da “hystória” de cada um, esse objeto pode “tomar corpo”, de formas mais ou menos veladas, seja através de suas produções artísticas, seja através de seus gostos (OE:314).
Assim, tal como o quadro que serve de armadilha onde depor o olhar, a voz também dispõe de suas armadilhas (Vivès: 2018), que a desvelam e a pacificam. Não me refiro, por óbvio, à sua fenomenologia alucinatória, nem mesmo às suas ligações com as manifestações primárias do Super-eu. Originariamente, o real da voz, enquanto objeto primordial, tem sua necessidade no Outro materno, manifestando-se particularmente no seu timbre vocal, com todas as consequências que isso pode acarretar. Do ponto de vista clínico, que se pense no silêncio do analista ou do analisando, silêncio invocante, que no seu continuum, desvela a voz, imaginarizando-a como objeto.
Mas as armadilhas da voz se mostram particularmente na música, cujas articulações de continuum e descontinuum a velam e desvelam, produzindo gozo; no canto, cuja mistura de voz e palavra acalma e pacifica; no grito, cujo continuum desvela a voz e a manifesta na sua materialidade a mais pura e a mais perturbadora. Que se pense nos quadros “O grito” de Edvar Munch (1893), ou no vocalize dos castrati ou da diva de ópera (Vivès, 2012), onde a voz, à medida que toma corpo, toma igualmente o corpo… Afinal, “também se goza por influição dos lábios que narram [cantam]”, como diria o nosso grande Machado de Assis (Capitu, XXI, in fine).
Referências:
Freud, S. (1909) Observações sobre um caso de neurose obsessiva. Obras Completas, vol. 9. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Lacan, J. (1966). “Position de l’inconscient”. Écrits. Paris: Seuil, 1966, pp.829-850.
Lacan, J. (1973) “Nota italiana”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp.311-315.
Lacan, J. (1953-54) Seminário 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1979.
Lacan, J. (1955-53) Seminário 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
Lacan, J. (1962-63) Seminário 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
Lacan, J. (1964) Seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
Lacan, J. (1965-66) Seminário 13. O objeto da psicanálise. Edição do Forum do Campo Lacaniano de São Paulo, 2018.
Lacan, J. (1972-73) Seminário 20. Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
Lacan, J. (1973-74) Séminaire 21. Les non-dupes errent. Site Patrick Valas.
Lacan, J. (1975-76) Seminário 23. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
Miller, J.A. (1994) “Jacques Lacan e a voz”. In Opção Lacaniana online. Ano 4, N. 11, julho 2013.
Vivès, J.M. La voix sur le divã. Musique sacrée, opéra, techno. Paris: Flammarion, 2012.
Vivès, J.M. A voz na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018.
Luís Andrade
João Pessoa, 11.02.2020







