PRELÚDIO II
V COLÓQUIO FCLRDB
Esther Mikowski
A criança, o dizer e a violência
A propósito do tema do nosso Colóquio, trago a violência sexual como ponto sensível de articulação entre a sexualidade infantil a partir de Freud e o dizer da criança.
A violência em questão, na maior parte dos casos, é perpetrada por alguém do círculo de confiança da família. Isso quer dizer que o poder exercido por aquele que violenta é acompanhado pela palavra que cala ou expõe a culpa. Portanto, a revelação ou o silêncio são sempre escolhas da criança, ainda que exista um terceiro que presencie e conteste.
Diferente do imaginário social, nem toda vítima de violência sexual se encontra devastada após o fato ou a revelação, assim como não há manifestações sintomáticas que a atestem seguramente. Cada sujeito irá lidar ao seu modo, porém algumas condições poderão ser determinantes: como os representantes parentais estão envolvidos, se sua palavra foi tomada como fantasia ou verdade, sua relação com a castração e com a diferença sexual.
A sexualidade infantil que Freud anunciou em 1905 é o movimento pulsante que dá contorno ao corpo, através da qual o sujeito se organiza e lida com os objetos que simbolicamente o ajudam a construir seu mundo e sua relação com o outro. Por isso, desde suas primeiras manifestações sexuais, as crianças propõem teorias para responder aos problemas encontrados sobre o sexo, dentre eles, a origem dos bebês, a diferença sexual e até a existência da relação sexual.
A pulsão de saber, como formulação, traz às construções de Freud o caráter pulsional desse movimento de investigação da criança que a coloca corporalmente a investigar e dar origem às teorias sexuais infantis. Estas iniciam na latência quando a sexualidade se manifesta diretamente no próprio corpo. Como nos lembra Lacan (1995, p.49.) , “O que diz Freud é […] que as teorias sexuais infantis […] vão marcar com seus vestígios o desenvolvimento de um sujeito, toda a sua história, tudo o que será para ele a relação entre os sexos”.
Esses vestígios tomam outra dimensão quando a violência atravessa a descoberta do gozo do próprio corpo, as teorias sexuais infantis e até a ressignificação da genitalidade na puberdade. A marca lógica da latência é divisor de águas para o que a criança pode ou não dizer da sua experiência, tanto pela inibição, manifesta pelo asco e vergonha, por exemplo, como pela relação entre pulsões e fantasias.
O que a violência sexual coloca também em questão é a antecipação do gozo sexual, não mais vivido como autoerotismo ou fruto das pesquisas que as crianças realizam umas com as outras. As fantasias decorrentes desse encontro sexual velam uma cena vivida na realidade concreta e compartilhada. Embora possamos concordar com Freud quanto ao estatuto da realidade, quando diz que “no inconsciente não existe um signo de realidade, de modo que não se pode distinguir a verdade da ficção investida com afeto” (Freud, 1897/2006, p.309) , se a experiência sexual é tomada como violência, produz outros efeitos de anteparo ao traumático que a fantasia encobre.
Quando colocada em palavras, vinculada à voz do outro, a violência toma (o) corpo. Como ato marcado pela confiança, pelo gozo e pelo afeto, a dimensão traumática da violência só se revela quando o outro coloca nesses termos. Por isso, não é incomum que os abusos se repitam por anos ou haja revelações tardias quando algumas pessoas identificam traços da sua própria experiência ao escutar outros relatos que a nomeiam como violência.
As demandas dirigidas à criança quando a violência é revelada são determinantes para as narrativas sustentadas por elas, consequentemente para os enunciados que serão julgados como verdadeiros ou falsos. Porém, o dizer da criança estará articulado ao discurso do Outro, portanto, à demanda do Outro.
O fato de que há um dizer sobre essa experiência produz tanto ecos no corpo como silêncio originado da culpa pelo prazer, pelas famílias despedaçadas, pelas consequências do seu ato de dizer. Assim, quando lemos o enunciado de Lacan (2007,p. 18) “ as pulsões são no corpo um eco do fato que há um dizer”, como podemos pensar sobre o dizer da criança articulado às pulsões que respondem à demanda do Outro e à violência que toma (o) corpo?
Referências Bibliográficas
Freud, Sigmund (2006). Carta 69.(Tradução de Jayme Salomão). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. V. 1. (carta datada em 21 de setembro de 1897).
Lacan, Jacques (1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto. (Dulce D. Estrada, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Obra originalmente estabelecida em 1956-57)
Lacan, Jacques (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. (Sergio Laia, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Obra originalmente estabelecida em 1975-76).







